Textos de Bernardo

as predições dos mouros

cruzar o estreito de gibraltar é iniciar a construção de mais uma maldição para nós, os nascidos ao sul. adentrar terras desconhecidas, com um idioma que sempre nos soa diferente, como achando-se convidado é um ato de ingênua irresponsabilidade. não importam as nossas armas, não importam os tamanhos dos nossos exércitos, não importa o quão forte nos pensemos, pois a única certeza é a de que derrota virá. em algum momento ela virá. há naquela terra um povo que sabe fingir ser pacato. um povo que sabe dissimular a rendição pelo tempo que for, até chegar o momento do contra-ataque. são, acima de tudo, silenciosos estrategistas. e no momento em que se levantam e se mostram enfim indóceis, bradam as suas palavras bem colocadas em orações bem construída, levantam suas espadas e lanças bem afiadas e põem abaixo tudo o que for interpretado como invasão. naturalmente conhecem as regras da terra melhor e festejam as reconquistas enquanto nós, os mouros, fazemos o caminho contrário do estreito. nós, ou mouros, no caminho de volta nos contentamos com a ilusão da posse, a ilusão do reino e percebemos o quanto este estreito se alargou e torna a travessia de agora muito mais penosa. enquanto isso, ao norte, num processo de reconstrução qualquer, seguem expurgando o máximo que podem das memórias de nossa presença. querem voltar a ser como eram, pacatos e dóceis. limpam quase tudo, pois, de toda nossa ilusão, ficam apenas as empanadas, algumas outras palavras e o achar graça do nosso sotaque ao falarmos palavras como "sete".

incursão por um cigarro


invadiram meu quarto. invadiram minha solidão. aquele casal na janela do segundo andar, ao surgir ali, meio de supetão, enquanto eu olhava só para o vazio emoldurado pela cortina. o silêncio dos meus pensamentos parou sua amplificação ao ver surgir da penumbra do fundo do quarto aquele casal de dorsos nus. chegaram em alta madrugada, sem pudor, claramente afetados de um carinho mútuo e mudo. não diziam palavras e, da maneira mais clássica possível, eram apenas com os olhares que travavam um diálogo próprio, incompreensível para qualquer ser além dos dois. tentei entendê-lo, mas minhas lentes de contato não eram capazes de decifrar aqueles códigos. um olhar para baixo, outro para o lado, buscando algo que eu não via, os dois olhares se conectarem, dois sorrisos. uma frase completa que eu não entendia. eles não me percebiam. eles não percebiam nada ao redor, com exceção da fumaça do cigarro que pairava por entre os olhares. cigarro que os dois teimavam em dividir com uma velocidade considerável. talvez movida pela ânsia de voltar ao breu de onde saíram. nunca achei que fosse sentir inveja de um ser inanimado como um cigarro, mas assim foi. ganhei afeição por ele ao vê-lo sambar pelos dedos, repousar por entre os lábios, gerar fumaça só para ser notado. queria aquilo tudo. queria ser aquilo tudo. transfigurar-me em fumaça e fazer casa ao me espalhar por seus corpos. mas não. sou só um homem concreto, por vezes metafísico de pensamentos silenciosos e sem a fumaça de um cigarro. voltaram-se a escuridão acolhedora e desistiram do cigarro. deixaram-no pela metade no peitoril da janela. aceso. um farol para meus desejos. até que eles me silenciem de novo.

meu silêncio

fico parado. calado. quieto. observando ao redor o som que aumenta, os tons espumantes que crescem com o colarinho bravejante das cervejas que descem. ouço argumentos que poderia dizer, ideias que poderia criar, vontades que poderia ter. mas calo e olho nos olhos esperando uma brecha cinematográfica para dizer qualquer besteira, mas calo. espero passar a ânsia de me colocar, de soar esperto, e a vejo ser levada para outros mares, outros ares. suspiro me lembrando daquele samba. calo e ouço as vozes que poderia ter. simulo a risada ao entender a meia piada. simulo o tom sério a entender o meio argumento. simulo a presença enquanto sou só meio mundo. meio aqui, meio aí. carrego o respeito aos mudos por saber o esforço de falar e tento não decepcionar. olho para o copo, reflito sobre algo relevante e chego a conclusão de que nada sei além de alguns discos e umas poucas histórias sem graça que vivi. sou trivial como esta conversa. como esta noite. não quebrei braços, não fugi de casa, não tive mil amantes. só tenho que pegar um ônibus. digo qualquer besteira que passa. todos riem e me sinto bem. me sinto mais completo. definitivamente mais completo que o copo, mas calo novamente. goles me dão frases, me dão ideias, me dão mais vontades de estar em outras mesas com outros copos. penso em como estou feliz esperando o dia de esperar o ônibus. me calo com um sorriso besta no rosto, um sorriso mais úmido que o copo seco. a mesa silencia e perguntam qual o meu nome. calo a minha felicidade de não querer estar ali. de poder estar aí. respondo e novamente o barulho prossegue.

horizontes

eu nasci por entre as montanhas da serra fluminense. aprendi desde pequeno que o sol se põe mais cedo por aqui. os picos, os morros, as montanhas, tão belamente altas, rivalizam com o céu e deitam sombra pela cidade ao bel-prazer de eles próprios. aprendi desde cedo que, aqui, nós sempre fomos reféns das montanhas. cresci sem saber o que é horizonte. para olhar o céu, tinha que inclinar o pescoço e buscá-lo por entre as muitas nuvens. buscar ar para respirar para fora daquelas sufocantes grades cobertas de musco e verde. era preciso querer ver o céu. durante o inverno, ele se escondia sobre as neblinas que davam um ar de pudor às pedras e silenciavam os pedidos que imaginávamos subir aos céus. era preciso imaginar ver o céu. ele não era tratado como um brinde compensador, como se dado de graça no final de festa de aniversário de um ano. havíamos de querer notá-lo para sabê-lo, na minha terra. era preciso vencê-la. portanto, talvez minha terra não seja de grandes vislumbramentos, mas sim de uma constante de esperança. onde há montanhas, há topo. há um limite a ser rompido. há outra visão. era no cocuruto das pedras que podíamos transver nossa terra. olhar para nós mesmos com a arrogância das pedras que veem tudo. olhar para baixo e ver o vale, o contorno das ruas, o lugar onde me deitava para ver o céu. de lá de cima, tudo era horizonte. tudo era possibilidade. eu me pensava nuvem.

quando fui morar com o mar, me afoguei. havia horizonte demais para mim. eu. eu que sempre fui pedra.

dos objetos que caem

papéis, mochilas e malas estão mais ansiosos com o reencontro do que nossas pernas. nossas pernas talvez só estejam aflitas. afinal, serão elas as responsáveis por não nos deixar desabar quando dados os abraços. já esses objetos inanimados sabem que todas as atenções estarão voltadas para eles. no reencontro, as mãos precisam se ver livres para tocarem o que tanto esperaram. querem logo fazer casa por volta da cintura ou no valezinho da nuca. os dedos a sonhar por refazerem os caminhos já descobertos no passado, mas sempre atentos para quaisquer mudança de rota. para isso, cairão por terra dando início à cena dos objetos que caem. o momento de ouro onde o medo da altura, até de quebrar por ventura, já não pesa mais nada para estes objetos que se sabem importantes. todas as palavras escritas e mudas de roupas seguiram seus caminhos para isto, para este momento. no início, a soltura, aquele pequeno frio no estômago que só as verdadeiras montanhas russas são capazes de reproduzir. e então, numa fração de segundos acelerados pela insensível gravidade, tudo já está acabado e os aplausos inaudíveis já estão a ressoar. permanecem calados no chão, estáticos, a apreciar o resto do espetáculo que passa a acontecer bem longe deles. os murmúrios e suspiros se vão junto com os corpos. só ficam o chão aquecido pelo calor dos dois pares de pés e os objetos inanimados, agora, contentes por encarnarem tão bem seus personagens. abaixam-se as colchas. as luzes se apagam. a platéia já partiu.