Textos de Bernardo

as mortes das inocências

homens e pêlos. uma relação de maturidade. primeiro os que surgem na cabeça e trazem junto as descobertas. no primeiro andar, a primeira partida. nas primeiras palavras, as primeiras lágrimas. surgem os primeiros traços daquilo que ele será a medida com que some aquela área branca, disforme e desprotegida que declarava a inocência. os cabelos são a morte da inocência. descobrimos que existem penteados onde antes não havia nada. descobrimos a futilidade nos cabelos. depois vem o resto do corpo naquela sensação desconfortável de enfrentar o desconhecido. a sensação que morre ao descobrirmos o fracasso em nos controlarmos. a morte da inocência da eternidade. percebemos que o nosso corpo é, senão, mera ferramenta para nós mesmos. barba, cabelo e bigode a nos desafiar todos os dias perante hoje o espelho sustentando aquilo que queremos esquecer ou, no mínimo, ignorar. hoje, dos seios de uma mãe negra, nasceu mais um dos guerreiros que marcham sempre ao ponto final. ele surgiu como os outros, encaracolado, teimando em machucar meus olhos e irreproduzível no que diz respeito a posições. um bastardo louvando um hino solitário e de tom diferente de seus irmãos. guardei tanto afeto por esse ser solitário, desejando que, por ventura, seu clã se multiplicasse em minha fértil lavoura capilar. tenho afeto por seres solitários e fios brancos. fios brancos talvez combinem com casas vazias, vinhos e partidas. a morte da inocência de que viveram felizes para sempre.

despertador

hoje acordei com um texto lindo na cabeça. era sobre a minha avó. sobre uma frase que ela me falava num sonho que tive. um sonho em que ela me aconselhava. ando precisando de conselhos de avó ultimamente. um texto sobre uma resposta bonita, poética, que eu criava para respondê-la e como ela se orgulhava de mim. um texto que esqueci, sobre uma frase que minha avó me disse num sonho que esqueci. um texto sobre a voz da minha avó, que esqueci. sobre como era ouvi-la na varanda do segundo andar, enquanto esperávamos o almoço ficar pronto. um texto sobre como é esquecer o hábito de comentar a vida alheia como se nos importasse. esquecer como é estar do lado daqueles que fazem com que o alheio seja desimportante. preciso de conselhos de avó. preciso repetir pratos quando já satisfeito.

acordei para esquecer as palavras que queria vir a lembrar mais tarde, ao encarar esta página em branco.

hoje acordei com um texto lindo na cabeça. um texto para lembrar de minha avó. para despertar.

o cão covarde

hesitei
em escrever aquele verso
já soterrado por outras lembranças
perdeu-se para sempre
mais um poema das saudades

hesitei
em utilizar aquele verbo
já desgastado por outras lembranças
ganhou-se para sempre
mais uma dama para as saudades

  não há esperança para os covardes
  nas poesias
  ou nas utopias

tem mas acabou

Lembranças o aquecem por dentro.
Mas, ao mesmo tempo, lembranças são capazes de estraçalhá-lo internamente.
--- Haruki Murakami

um endereço que se torna só um endereço
destinatário de compras online
e contas que não me importam mais

aquelas ruas tornam-se obras de arte
num museu particular
habitado por fantasmas
guardados em três por quatros
dentro da minha carteira

como olhar a fumaça do cigarro
  desfaz
    as casas os becos as ruas
    abrem novos espaços
  desfaz
constrói-se uma história própria

num ônibus de madrugada
uma direção
uma epifania
chamada casa

fome

no café da manhã eu penso na caneca do flamengo esquecida no escorredor faz algum tempo. no almoço, penso nos pratos que não comemos porque não tivemos tempos de aprender a cozinhá-los. no jantar, penso em como é estranho comer sem assistir a alguma reprise de seriado dos anos noventa. penso com a fome daquilo que já não existe mais. nesse apetite pelo vazio, vejo as mil dimensões românticas que pude criar em cada uma das refeições. enxergo cada uma e mergulho assim como mergulhava quando criança nos meus eus multiplicados pelos espelhos das barbearias de minha cidade. encontro em cada uma delas apenas um vestígio decrescente do que sou - ou melhor - do que poderia ser, até por fim me tornar nada mais que um ponto distante e irreconhecível.

na primeira imagem, fica clara a proximidade com a realidade; meu cabelo está ali, minhas rugas, sua sombra. na primeira, ainda consigo sentir vergonha do meu olho esquerdo meio fechado e ainda acho graça do jeito que você pronuncia meu nome. na segunda, em que encaro minha nuca, já não tenho mais as dúvidas de ontem e os contornos da minha boca não desenham senão um sorriso vacilante de quem não tem com o que se preocupar enquanto você assiste tv deitada em meu colo. da terceira para a frente, somos formados por contornos que nos desenham de maneiras idealizadas, voluptuosas, irresponsáveis. só nos interessa nós mesmos em pontos e caminhos infinitos que não nos levam a lugar nenhum.

penso e uma voz me salva do transe. uma pedra invadindo os espelhos e deixando somente os cacos refletindo os fragmentos daquilo que me sobrou. um restaurante, uma mesa para um e um cardápio na mão. é o garçom quem me pergunta qual prato eu desejo e não sei o que pedir. hesito e não invento mais.

peço um arroz com filé e fritas para viagem.