Textos de Bernardo

da arte de observar besouros pela noite

abster-se de objetivos. voar a esmo em um trajeto circular centrado em uma fonte de calor e luz. não se importar com concorrentes. aprender a descobrir o salto no vazio. aprender a descobrir superfícies duras em colisões frontais. retrair as patas como proteção em luta com inimigos maiores. demonstrar as garrinhas como um último ato de rebeldia quando os maiores te capturam. defender-se de quedas bruscas. aceitar que quedas bruscas acontecem. agonizar por estar inerte em um mundo de cabeça para baixo. lutar para virar. sucumbir ou virar. virar. descansar após grandes batalhas. esperar o dia raiar sabendo que ele irá chegar. voltar para casa.

chegou a noite. no telefone, a voz do outro lado da linha ainda não entendia o que se passava ao ouvir:

eu voltei

farsas daquele dia escuro

na face
do dado
o número
pelo acaso
guardado

na face
do rosto
o futuro
pelo tapa
imposto

em face
ao susto
a solidão
de um orgulho
robusto

na face
do dado
o caminho
pela sorte
trilhado

fim da fase
    das farsas
    dos tapas

nossos gritos

todo o barulho
antes do estilhaçar
do copo
contra a parede

    todo esse barulho
  gritando
    para nós
  calados

o estridente grito
abafado pela água
a escorrer
muda

súplica do copo
  pela vida
    nossas vidas

a preguiça de ter de limpar
  o que há de ficar pelo chão
    quando nos calarmos
por fim

melancolia

ando sentimental
em tudo o que há
    ausência

o tombo da criança
a voz de Cazuza sozinha
um peito vazado na noite
porta-retratos vazios

de tudo que é vivo
ninguém há de me entender
ou brincar de psicólogo

exceto as gaivotas
  flertando com o mar
    os ventos fortes do mar
  mas eternas
amantes ternas da terra firme

evolução

hoje me despedi
do grande elefante branco
agarrei suas orelhas
abracei seu pescoço e
desfilamos pela avenida
acenando para a vida
pessoas a esperar o ônibus
não entenderam nada
vendo-me cair de costas
quebrar duas costelas e
por fim me por a chorar
de tanto gargalhar
ao perceber que no chão
só havia um pouco mais
de chão
de nada mais