Textos de Bernardo

olinda

as noites de quarta-feira de cinzas são veladas por algum tipo de medo, algum tipo de aflição. uma eletricidade que silenciosamente nos atravessa a todos.

amanhã, inevitavelmente, a realidade irromperá.

dentro do que ainda era sonho vivo, eu me tornava um ser de lama. me debatia entre outros que, num último esforço para resguardar a fantasia, se festejavam debaixo do primeiro e último temporal daquele carnaval. todos os sorrisos servindo de faróis arrudiavam uma deusa eleita. detentora de um talismã, ela bailava de dorso nu, com guias metálicas cruzadas sobre os seios e um pano de lantejoulas douradas cobrindo-lhe a cabeça e os olhos. ao pedir sua bênção, ela me brindou com uma anunciação. me atestou haver um futuro qualquer para além do barro que carrego como rastro de mim.

o barro é terra, resseca e destrói.
há que encharcá-lo, torná-lo argila e moldá-lo
àquilo que creio ser, àquilo que ela vislumbrou em mim.

dentro de outro sonho, meus olhos caranguejos vagavam de um lado a outro. buscavam os pares de ontem por entre a lama que engolia tudo. o ruidar do fim ao redor exigia seus abraços para me consolar, antes de acordarmos amanhã, sem imagem e sem som. quando os encontrei, percebi que suas garras também me buscavam e ouvi tudo o que queria ouvir. entre nós, gozamos um silêncio inventado e que abria espaço com fome de tudo o que poderia vir a se tornar.

maluco, eu danço uma última ciranda, fecho os olhos e vejo tudo vermelho de novo.

não acordo e nunca mais acordarei. não por querer sonhar um carnaval eterno, mas por querer seguir tendo fé nos tantos segredos que aquelas ladeiras ainda escondem para mim. neste reino de encantaria, me remontei aos poucos, catando as peças por entre os intervalos das notas do frevo. reaprendendo que as coisas muito boas vão embora mais cedo e relembrando métodos de sobrevivência ao cruzar todo os quatro cantos de mim.

aqui, na encruzilhada que sou, há o caos, o céu, o sol e o mar.
e uma incessante ideia de que, ali, eu conseguiria ser feliz toda manhã.

as curvas se acabam na estrada de santos

cravejados sob meus pés
fragmentos pontiagúdos
da sua última declaração de amor

sílabas estraçalhadas
numa curva qualquer
das memórias daquilo que pensávamos ser

o sol a pino
cega com o brilho
dos destroços da sua voz vidro

o motor-cabeça, desligo
e sigo

em algum caminho
sem notar minhas pegadas de sangue
invento da sobrevivência
algum tipo de brio
frio

outra caverna

enquanto de mim
formarem-se sombras,
encerarrei por fim
uma verdade

desterrado

uma cova me cativa
um buraco negro
que me convida

cava em mim
uma cama de calor
um vazio de terra
essa ilusão de chama
que me cobre
e me cega

ausculto
pelas poucas frestas
um caos dissonante
em céus distantes
de onde corvos e gralhas
desistem de migrar
silenciosos
e hesitantes

rancor

o passado
não passa
gruda, cola
feito graxa