Uma noite na Boa viagem

Muitas vezes paro pra ver
que na verdade
não gosto de pessoas
apenas gosto do que elas me fazem sentir

E que neste querer
há sempre morte,
No desejo de viver novamente o passado

Pois que o novo nunca tem petição,
é algo dado que não tem remetente

Eu sei hoje que pensava gostar de alguém,
de uma menina mulher,
de cafés, cervejas e cigarros
e de um dia especial frente ao mar

Na verdade
ainda gosto de cafés, cervejas e cigarros
porém da menina,
só posso dizer que ainda gosto do mar

The Helba Song

Aqui estou nesta ilha
longe de quem me ama
e perto de quem me quis

Desde o começo sempre estive só
não há novidade para mim aqui
Não há utero que consiga parir novamente o que senti um dia

Todos os sentimentos morreram em nome da verdade

O animal está domesticado novamente
até que a noite caia mais uma vez,
e a besta se erga para trazer um novo deleite
e com ela uma nova queda

Meus navios seguirão por mares tempestuosos
perfurarão mil ondas como colossos se erguendo na madrugada
meus homens perecerão em meu nome,
e eu marcharei novamente sobre sob a mesma terra que pisei um dia,
pois ainda sou quem dá nome às coisas,
e delas nada temo

Eu
estou no branco
com a coroa por vir

Eu
Nada temo

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Caminhar

Não quero saber quem sou

Só preciso caminhar,
caminhar, caminhar e caminhar

Irei de cidade em cidade
Em um andar sem pensar
sem falar ou me comunicar

Quero caminhar

Caminhar em quanto a consciência não volta

Sem rumo eu quero caminhar

Vou aonde algo me faz ir
um lugar que é aqui e ao mesmo tempo se faz longe de mim
um lugar onde a fé cria expectativa
de ser o repouso ou união

E se um dia eu lá chegar
ou antes minha consciência voltar

Saberei mais uma vez
que de nada adianta perguntar
pois as perguntas são pedras nas águas que correm

Perguntas não levam a nada,
é só medo,
medo de saber ser
um pote sem fundo

concerto para pianos tortos

são dois corpos nus, lado a lado, pressionando as teclas de um piano. uma cena idealizada para quem a vê de fora, um mundo concreto para quem o vê de dentro. dessas cenas sem um porquê de acontecer, afinal, são só um casal juntos por mais um entardecer ao lado de um piano, como tantos outros já o foram. ele se levanta e escolhe notas ao acaso, enquanto ela entende o ato como um desafio e se posta ao seu lado. nenhum dos dois hesita qualquer pudor. você sabe tocar? não, ela responde com uma vergonha disfarçada. ele encontra dois acordes que soaram agradáveis aos seus ouvidos e percebe um olhar curioso. monta uma valsinha qualquer, os repete e fala docemente: é só fazer o que quiser com as teclas brancas. ela sorri e começa a tatear cegamente pelas teclas de marfim. seguem tocando a valsa torta para ninguém além dos dois.

risos se mesclam ao ambiente.

brincam de achar padrões, de se descobrirem em timbres. mas, a medida que se conhecem musicalmente, uma aflição os contamina: qual será a próxima nota? ela rapidamente se entedia em seguir regras que desconhece - por que somente as teclas brancas se temos todas as outras? por que tamanha limitação? - e começa uma aventura perigosa pelo mundo negro dos sustenidos e bemóis. claramente aquelas andanças bicolores não soam atraentes ao mundo externo, mas, lembrem-se, aqui falamos do mundo concreto dos dois, do qual eu e você não entendemos nada de sua beleza.

respirações se mesclam ao ambiente.

ele entende cada dó sustenido fora do tempo como um convite para definir uma estrutura musical. sente-se importante, monta uma estratégia em sua cabeça e torce para que ela perceba os toques propositais do seu corpo no dela. os cotovelos e ombros sendo sempre a guiada delicada de sua mão direita, enquanto a cadência do tocar dos pés e das coxas são definidos pelo ritmo de sua mão esquerda. se embaralha com toda a coordenação motora exigida e erra por algumas vezes o tempo, mas sua parceira não percebe.

arquejos se mesclam ao ambiente.

ela percebe o mundo o suficiente para compreender os toques e desejar as mãos que os produzem. continua desobediente e, agressivamente, lança sua mão esquerda para começar compor as canções do corpo. a sua direita permanecia no piano reproduzindo um padrão de sol, lá e dó que havia encontrado a pouco. com a outra, acaricia as harpas dos cabelos dele ao mesmo tempo que as notas. eles se transformam em som. dois pares de olhos fechados em um diálogo lascivo composto de notas musicais. o volume se instaura em uma crescente, o grave se torna forte como o esperado e o agudo ganha a agilidade nos mesmos sol, lá e dó. a música sobrevive até seu último suspiro e num contratempo qualquer ela é interrompida por um prensar de várias teclas. o piano grita desafinadamente para que fiquem e silencia. uma última súplica dele, que havia ganhado afeição por aqueles dois corpos nus.

nesta tarde, aquele piano descobriu melodias que nunca pôde compor e permaneceu aberto como se as admirasse ao som ambiente.

A marcha de lilith

Meus filhos são os abortos que nasceram dos homens
pois meu ventre não é mangedoura nem berço para crianças
eu quero que todos saibam e me possuam
pois ninguém é dono de mim
eu sou a filha da dispersão e a mãe da angústia
a todos dou minha beleza mas a nenhum dou meu amor
e quero ser assim por todos os aeons que virem
serei eu abusada por todos os homens por todos meus orificios
pois eu sou hoje aquilo que não terás amanhã,
a bela jovem senhora do desespero
aquela que traz a paz para depois tirar
o engano no caminho daquele que busca seu pai no meio da noite
eu sou quem anuncia a coruja e o reencontro com o sol