portão 07

esses caracteres em um papel não sabem nada de quem os carrega. determinam horários a serem seguidos, portões a serem encontrados, poltronas a serem ocupadas. números, letras, horas. caracteres frios que definem pontos iniciais e finais sem saberem do que há de mais importante. há sempre o caminho. as passagens aéreas são insensíveis por não saberem nunca dos encontros e partidas que carregam em si mesmas. são meros pedaços de papéis que fornecem a entrada para os sonhos ou a saída dos mesmos. essa poltrona 23a nunca saberá o que carrego no peito. este vôo de quatro números que não consigo decorar mal sabe de outra importância sua que não a linha reta entre recife e rio sem escalas. seguimos para a fila de embarque com uma calmaria incoerente para este horário da madrugada. em minha frente há tantos futuros a serem construídos e atrás de mim, tantos passados a serem esquecidos. me situo num ponto cego que abandona um presente ideal num táxi qualquer e segue esperançoso pelo carinho de um pacote de amendoins. não indiferente, apenas positivista. minha identidade encardida e uma mochila carregada de bolos de rolo são o que o mundo acha que carrego comigo. há, no entanto, a bagagem invisível repleta de sentimentos que fugiram ao check-in com a moça simpática. embarco como um terrorista. granadas de saudades implosivas, pólvora espalhada pelos lábios. minha carteira não me denuncia em nada e, agora, a apatia e indiferença do meu bilhete compensam por não levantarem suspeitas. dou um boa noite sem graça. vejo da janela pequena as luzes da pista, do aeroporto, do bairro, da praia. as luzes que só eu vi. penso em dormir, mas prefiro ver a cidade se afastar.

mundo de cão

Você me abre a porta e já me sabatina:
- Que te parece essa música?
- Você tá me julgando?
- Isso me faz gay?
Um sorriso mole, a camisa meio suja e um beijo molhado. Teus cachos se entrelaçam na minha franja e eu já me perguntando "que diabos eu tô fazendo aqui?"
Menos de meia hora e já uma explosão: reclama do comprimento do próprio cabelo, fala do trabalho, revive viagens, comenta passagens do escritor peruano, lembra de algo e corre pela casa pra me mostrar entre sorrisos tortos e olhares de dúvida. "Ela me entende?". Tento te acompanhar e cito duas músicas e já me emenda outras sete. Comento meu escritor favorito e lá vai você, lembrar da última vez que tomaram cerveja em Nova York e você encheu o velho de entorpecentes.
Eu me canso.
Sou sempre o lado pesado da balança, mas contra você, amigo, sou peso pena.
Quando dou por mim, me arrasta pra cama e sussurra desejos, sonhos de noites passadas, palavras de escárnio mescladas com doçura. Me domina, corpo e voz. Quando termina me chama de louca, louquinha, pirada. "Tá aqui só pra me enlouquecer, é?". Quero dizer que sim mas quero fugir. Você me cansava. Três horas contigo era de um esforço que poucos sobrevivem. Me levanto para um cigarro, reflito antes na sua estante, talvez meu maior fetiche, e vejo sua foto com seu filho. Ali sua robótica de gênio esquizofrênico se esconde, morre, desfaz. Ali é um sorriso (ainda torto), o menino nos braços e a grama verde verdinha do parque. Minha mente viaja. Penso na mãe, penso na gravidez, penso se houve casamento e começo a cantar Rubel baixinho. Eu sempre escutei Rubel pensando em você, porque eu sabia que nunca daria certo, como não deu, mas eu pensava "eu sei vai dar errado, a gente fica longe e volta a namorar depois". Um presságio, meio vontade, meio ojeriza.
Você surge do seu quarto, meu casaco nas mãos e um bocejar nos lábios. "Babaca", eu penso. Uma coisa é eu querer ir embora, como já queria, outra coisa é você me tocando daqui.
"Babaca, babaca, babaca".
Mal vejo meu pequeno prédio numa rua vazia em casa, uma mensagem. Outra no dia seguinte e mais uma na manhã que vem. "Foi a última vez", me repito. "Chega, chega!".
Uma cerveja e um desabafo entre amigos.
Duas e "não fode" vira "talvez talvez".
Na terceira te ligo. "Vem, minha linda, pode vir."

- Que te parece essa música?

cosmos

construo um passado em uma velocidade de oitocentos quilômetros por hora para a moça de biquíni que só vê o ponto que me transporta no céu se movendo lentamente. cada respiro das turbinas me coloca em um futuro linear, semeando o passado com o rastro do avião para deixar florescer sentimentos. na medida que chegam novos fatos, os mais antigos se colocam ainda mais distantes e a luz de suas memórias segue se ofuscando. lembrar de algo, de alguém, é como olhar para uma estrela. o brilho que permanece é o brilho dos sentimentos que perduraram perante a passagem do tempo e guardam distância da existência concreta do que foram. é como a luz da estrela sendo sempre o passado e nunca o que se é de fato no presente. possivelmente o passado de um corpo celeste já morto no presente. nossas memórias, nossos carinhos por nossas memórias, formam nossas próprias constelações. se o universo cósmico está em constante expansão, também assim se encontra o meu - particular, por sua vez - se expandindo com o auxílio de um boeing. meus corpos celestes emanam luz sob a forma de palavras. sou um sol que define seu espectro através da escrita. me torno fácil de ler, de perceber através das variações de adjetivos, substantivos e outras classificações que já não me lembro. minha matéria é a matéria das estrelas. minha matéria é a poesia. a poesia muda minha densidade, me torna translúcido e só assim posso perceber como a refração causada atinge o rosto da senhora bonita por entre o espaço das duas poltronas da frente. ela não sabe do roubo de um pouco de sua luz por estas frases. escrevo agora as palavras emanadas por ela através de sua elegância, avidez e ternura denunciadas por seus olhos enquanto lê versos de manoel de barros. gostaria de dizer que me chamo bernardo. que há uma constelação dentro de mim. que há uma galáxia dentro dela. que nossos campos gravitacionais se aproximam. ela lê manoel de barros e eu me chamo bernardo. talvez o universo tenha começado assim: explodindo a partir de um verso de manoel de barros.

cep 20.000

no metrô zona sul
de ouvidos fechados
ouvi uma pessoa declamando poesia

ele era
  homem
  branco
  limpo

declamou
  uma atrás da outra
    drummond
    leminski
  até uma
    dele mesmo

que poesia há
em suas palavras
  másculas
  brancas
  limpas?

    a poesia de ouvidos
    tão fechados quanto os meus.

bolso

me guarde no bolso da frente da tua minissaia rosa. me guarde bem apertadinho com a tua coxa. só deixe essa camadinha têxtil me separando do giz da tua pele. me guarde na esperança de que eu toque. que eu toque para te dizer "bom dia" sem saber que minhas palavras vibrarão em tua coxa. te fazendo pensar em como deseja a vibração nos lábios daquelas palavras. deseje sim, eles próprios a vibrarem ali. transpire, sue, ofegue. me guarde no pensamento do próximo toque. na expectativa da próxima visita. no sonho da próxima esquina. guarde no futuro, no bolso que guarda o papel, a expectativa do toque.