tem mas acabou

Lembranças o aquecem por dentro.
Mas, ao mesmo tempo, lembranças são capazes de estraçalhá-lo internamente.
--- Haruki Murakami

um endereço que se torna só um endereço
destinatário de compras online
e contas que não me importam mais

aquelas ruas tornam-se obras de arte
num museu particular
habitado por fantasmas
guardados em três por quatros
dentro da minha carteira

como olhar a fumaça do cigarro
  desfaz
    as casas os becos as ruas
    abrem novos espaços
  desfaz
constrói-se uma história própria

num ônibus de madrugada
uma direção
uma epifania
chamada casa

fever dream

sonhei um sonho incrivelmente detalhado
em que a gente se amava, se sorria,
se casava

  o fruto do que eu não mais plantei

no fim, abraçados, contive as palavras
que gastava, para cuidar dos votos
de um ritual mundano que nunca sonhamos ter

  não saber o que eu diria
  é o motivo da tormenta

e sem saber o que pensar do sentimento
que só tive por ser sonho, por ser triste,
fico com medo de dormir

  eu nem pensava mais em você,
  mas fico feliz, pois nesse mundo etéreo
  existe meu voto que nunca existiu.

fome

no café da manhã eu penso na caneca do flamengo esquecida no escorredor faz algum tempo. no almoço, penso nos pratos que não comemos porque não tivemos tempos de aprender a cozinhá-los. no jantar, penso em como é estranho comer sem assistir a alguma reprise de seriado dos anos noventa. penso com a fome daquilo que já não existe mais. nesse apetite pelo vazio, vejo as mil dimensões românticas que pude criar em cada uma das refeições. enxergo cada uma e mergulho assim como mergulhava quando criança nos meus eus multiplicados pelos espelhos das barbearias de minha cidade. encontro em cada uma delas apenas um vestígio decrescente do que sou - ou melhor - do que poderia ser, até por fim me tornar nada mais que um ponto distante e irreconhecível.

na primeira imagem, fica clara a proximidade com a realidade; meu cabelo está ali, minhas rugas, sua sombra. na primeira, ainda consigo sentir vergonha do meu olho esquerdo meio fechado e ainda acho graça do jeito que você pronuncia meu nome. na segunda, em que encaro minha nuca, já não tenho mais as dúvidas de ontem e os contornos da minha boca não desenham senão um sorriso vacilante de quem não tem com o que se preocupar enquanto você assiste tv deitada em meu colo. da terceira para a frente, somos formados por contornos que nos desenham de maneiras idealizadas, voluptuosas, irresponsáveis. só nos interessa nós mesmos em pontos e caminhos infinitos que não nos levam a lugar nenhum.

penso e uma voz me salva do transe. uma pedra invadindo os espelhos e deixando somente os cacos refletindo os fragmentos daquilo que me sobrou. um restaurante, uma mesa para um e um cardápio na mão. é o garçom quem me pergunta qual prato eu desejo e não sei o que pedir. hesito e não invento mais.

peço um arroz com filé e fritas para viagem.

Janela aberta

Eu deixo a janela aberta porque sei que você sempre sente calor. Mesmo quando já foi embora. Assim, limpo a casa sem receio do que posso encontrar perdido dentro do sofá ou atrás da estante. A janela aberta me ajuda lembrar que não há muito você estava aqui, esparramado por todos os cômodos, e fácil assim o medo se desfaz. Relembro-me de seu corpo desnudo ou com aquela calça que eu insisto em querer lavar. Assim como seu prato, seu cabelos e parte de seus erros. Já te vejo em todos os lugares, menos em mim. E a gente sabe disso. Mas não, não é triste, e nunca vai ser triste. Foi o que pedi.
'não faça bem, mas que também não faça mal (...) que pelo menos dure enquanto é carnaval'.
Te cantei esses versos, mesmo sem que você entendesse. E isto também não é ruim. Essa coisa de a gente às vezes não se entender. Eu, que nunca me permiti calar, agora sou obrigada porque as palavras vem pelas metades ao meus lábios. E você questiona meu silêncio com uma curiosidade felina. Olhos como de um siames, de ressaca acumulada e enigma anil.
Te encaro de volta sem medo algum. E sorrio porque ninguém jamais terá idéia o quanto isso quer dizer.
Deixo a janela sempre aberta, porque você sente calor. De contrabalanço, o coração fechado, pra você não sentir frio demais.

da arte de observar besouros pela noite

abster-se de objetivos. voar a esmo em um trajeto circular centrado em uma fonte de calor e luz. não se importar com concorrentes. aprender a descobrir o salto no vazio. aprender a descobrir superfícies duras em colisões frontais. retrair as patas como proteção em luta com inimigos maiores. demonstrar as garrinhas como um último ato de rebeldia quando os maiores te capturam. defender-se de quedas bruscas. aceitar que quedas bruscas acontecem. agonizar por estar inerte em um mundo de cabeça para baixo. lutar para virar. sucumbir ou virar. virar. descansar após grandes batalhas. esperar o dia raiar sabendo que ele irá chegar. voltar para casa.

chegou a noite. no telefone, a voz do outro lado da linha ainda não entendia o que se passava ao ouvir:

eu voltei