quem é esse
que vive minha vida em piloto automático?
que não tem consciência ou memória
há tantos anos
me sinto
de repente
tão cheio de culpa
de tristeza
se é esse quem eu sou
quem é esse
que assina meus papéis
se finge de feliz
que engana a todos
fecha meus olhos
e me tortura
ao deixar que eu viva
três horas
da madrugada
outro dia, meus amigos disseram que
eu sempre serei fernando pessoa
a princípio
levei como um elogio
aos meus poemas
sabendo que estou longe de chegar lá
depois
como um insulto
ao meu recolhimento
minha introspecção
minha troca de faces
por fim
como um acerto
quem é esse que vive minha vida
e tranca a minha porta?
para toda a pressão
do por vir
dessa manhã escura
sem vontade
brincas com pílulas
de conversas
prometes tua imagem
bem borrada
entre um café e outro
pão na chapa
conto as vezes em que te vi
como quem conta histórias da infância
da minha terra
da sua adolescência
conto as vezes em que te vi
feito carmelita nas contas de terço
em êxtase com a reza de agora
na agonia da benção da próxima prece
conto as vezes em que te vi
nesses quatro poemas vermelhos
de uma manhã cinza
sem a paz dos dias que não te conheceram
conta a única vez que te vi
reduzindo-a em aurora
espalhada em tua imagem pela manhã
por conta dos sonhos da última noite
você vira as costas
sorrindo pra me fazer esquecer
que te vi chegar
com medo de fechar a porta
Quando nasci, um anjo reto
desses de grandes auréolas
tentou me avisar: Vai, Bernardo! Respire!
Deus cortou-lhe a língua.
O anjo emudeceu e não disse nada.
Olhou-me nos olhos e
depois de meu berro romper o mundo,
lágrimas romperam-lhe a face.
Chorou mudo
lágrimas vermelhas
protegidas pela placenta.