uma vez houve uma cidade

na rua das casas mortas
a ilusão transborda
num jogo de sombras inexistentes

sobre o terreno
vejo um terraço
sobre o terraço
corpos vadios enganando constelações
na busca por um norte oscilante
que o amanhã encerrava

mas se o futuro deságua
o passado desaba
e suja de barro
os lençóis dos meus fantasmas
expondo
as cicatrizes em quadras
memórias presentes
de um provo crente
em rotinas silenciadas

inércia

se eu pudesse
manteria o ar quente
estacionado para sempre
nos pulmões

inerte
enquanto vejo desfilar
glóbulos vermelhos
em rostos desconhecidos

seguro
não tomaria partidos
não sairia às ruas
torceria silenciosamente
por um bom número de plaquetas

enquanto o mundo deretesse
ou um pássaro cantasse
dolorosamente
um sopro

sobre as liberdades que não precisei conquistar

a última muralha democrática:
      o corpo político
resiste

diferenças espalhadas
em batalhões de exércitos periféricos
aquartelados em siglas
de neologismos do eu
ainda gritam

soam as 300 falas sobre o ser
contra uma invasão bárbara

os imbecis já venceram
saqueiam o futuro
reescrevendo o passado
com piadas e falácias

se a história não existe,
só resta
      o outro
mais uma reprise
do inimigo clássico

as panelas voltaram a entornar o leite
e entre mortos e feridos,
criancinhas e museus,
o homem bom, necessariamente branco,
                             hétero,
                             classe média,
ainda crê em si como a partícula divina.
o seu corpo apolítico,
sua existência apocalíptica,
ainda crê nos impostos de renda,
nas academias 24 horas,
e que a vida é justa e boa

como ela era para o seu avô,
necessariamente branco,
                hétero,
                classe média

a última muralha democrática sofre,
mas resiste.
em seu último bastião:
existir e ser
      necessariamente livre

momentum contínuum

a cabeça
rolando
momentum contínuum

    você lembra daquela libélula?

rolante da escada
os pensamentos
pisados e amarelos
ralando nos pelinhos laterais

    coragem rente à água

rolando
tropeçando em pescoços
pensamentos se repetem
sobem e descem
o rolante da escada

    mergulhos e desafios à liberdade

do lado esquerdo
tropeça mais um
pensamento de que?
o rolante da escada
ralhado pelo pelinho
subindo e descendo

    a inveja das asas pelo chão

o pensamento
engargalado
na saída reta
da escada rolante
nem sobe e nem desce
permanece
no degrau que volta pra dentro
  e se perde

    você lembra daquela libélula?

meditação

de vez em quando, me deixo absorver pela escuridão

ela não é fria, ou morna,
                ou assustadora

toco meu rosto, meu peito, com a ponta dos dedos,
     livre de qualquer julgamento ou consciência

não sou mais um animal,
     nem sofro ou sorrio ao ver as memórias
que desfilam, sem ordem e contexto,
sem pretensa de verdade

não sou liberto nem presidiário
não sou problema ou solução

até o momento em que involuntariamente
     parte de mim tateia a luz remanescente

a humanidade e o clarão
a nova, a refeita, realidade