Textos de Bernardo

Manifesto

Não vamos mais cantar
essas meninas utópicas e seus olhos azuis;
Não vamos mais cantar
as esquinas chiques de Ipanema;
Não vamos mais cantar
as solidões das sessões da tarde no Arteplex;
Não vamos mais cantar
a espera morna para a segunda-feira;
Não vamos mais cantar
bares abertos com público antes das sete;
Não vamos mais cantar
as mulheres rolantes de academias;
Não vamos mais cantar
ternos, gravatas e bravatas de advogados;
Não vamos mais cantar
o tempo que só faz ser contratempo;

Vamos cantar sim!
Só cantar
sem nem saber a próxima nota,
um ré sustenido,
a busca de um lá.
Vamos cantar como os mendigos
que fomos, somos e seremos
até a quarta-feira de cinzas.

Solidão e Solitário

Certas verdades
  só se descobre caminhando
    numa calçada da Lapa
      no meio de travestis
        às cinco e trinta da manhã
          de uma terça-feira de carnaval
            com um cigarro entre os dedos.

Num caminho
  só e
teu
            com um cigarro entre os dedos.

Certas verdades
só aprendemos
quando nos vemos
            com um marlboro vermelho entre os dedos
com nada no coração.

Lucky Strike

Por entre os dedos finos
sobe essa fumaça densa
do cigarro que anuncia o porvir.

Essa onda cinza e oscilante
que ruma ao limite do céu
para tornar turva e confusa
qualquer troca de olhares.

Contidas, semi declarações
desenhadas e compreendidas
pelo fugaz desejo
de gerar mais fumaça
que assina o que vem depois.

quarta-feira de cinzas

o homem do saco
roubou
toda minha vontade de conhecer
o mundo
agradeci-o com um café
ainda com a lembrança
dos teus olhos fortes

devia ter ouvido minha avó sobre
os casacos
atentado para suas crenças e folclores
perigos e alertas
sobre o homem do saco
e essas mulheres
munidas de olhares fortes

Hortinha

Escrevi teu nome
num grão de arroz.
Plantei teu nome
no pote de algodão,
juntinho do meu
num grão de feijão
para vingarmos juntos,
saciar essa fome
grande da saudade
de sermos nós mesmos.