olinda
as noites de quarta-feira de cinzas são veladas por algum tipo de medo, algum tipo de aflição. uma eletricidade que silenciosamente nos atravessa a todos.
dentro do que ainda era sonho vivo, eu me tornava um ser de lama. me debatia entre outros que, num último esforço para resguardar a fantasia, se festejavam debaixo do primeiro e último temporal daquele carnaval. todos os sorrisos servindo de faróis arrudiavam uma deusa eleita. detentora de um talismã, ela bailava de dorso nu, com guias metálicas cruzadas sobre os seios e um pano de lantejoulas douradas cobrindo-lhe a cabeça e os olhos. ao pedir sua bênção, ela me brindou com uma anunciação. me atestou haver um futuro qualquer para além do barro que carrego como rastro de mim.
há que encharcá-lo, torná-lo argila e moldá-lo
àquilo que creio ser, àquilo que ela vislumbrou em mim.
dentro de outro sonho, meus olhos caranguejos vagavam de um lado a outro. buscavam os pares de ontem por entre a lama que engolia tudo. o ruidar do fim ao redor exigia seus abraços para me consolar, antes de acordarmos amanhã, sem imagem e sem som. quando os encontrei, percebi que suas garras também me buscavam e ouvi tudo o que queria ouvir. entre nós, gozamos um silêncio inventado e que abria espaço com fome de tudo o que poderia vir a se tornar.
não acordo e nunca mais acordarei. não por querer sonhar um carnaval eterno, mas por querer seguir tendo fé nos tantos segredos que aquelas ladeiras ainda escondem para mim. neste reino de encantaria, me remontei aos poucos, catando as peças por entre os intervalos das notas do frevo. reaprendendo que as coisas muito boas vão embora mais cedo e relembrando métodos de sobrevivência ao cruzar todo os quatro cantos de mim.
e uma incessante ideia de que, ali, eu conseguiria ser feliz toda manhã.