Flores de defunto
Na minha infância, engraçada e saltitante infância, eu e as crianças da rua não costumávamos brincar com videogame, computador e muito menos jogos eletrônicos, não porque não gostássemos, porque até queríamos muito, mas isso era algo para quem tinha dinheiro no início do séc XXI, na cidade de Jardim do Seridó interior do RN. Então amávamos brincar de trica-cola, piu, esconde-esconde, doidinho...Dentre todas essas brincadeiras uma tinha todo um ‘C’ de competitividade aguçado eram as famosas “flores de defuntos.”
Achou estranho? Pois para nós era a coisa mais normal e divertida que existia. Era tradição na cidade. Um defunto morria e as senhoras mandavam as crianças buscarem as flores para enfeitarem o caixão, quando chegávamos para visitar um defunto o cheiro de flores naturais chega nos deixava enjoados. Mas era de praxe. Ficávamos fazendo cera ao enfermo, esperando a hora de sua morte para corrermos pelos terreiros com uma bacia de lavar roupas debaixo do braço por todo o bairro em busca de flores para enfeitar o caixão do falecido. Vencia quem trouxesse mais flores e chegasse mais rápido de volta para a casa do defunto.
Um dia, um dos vizinhos da minha tia estava enfermo,e claro, eu e meus primos passamos a tarde na casa dele. As senhorinhas rezando, a quase viúva chorando e a gente no terreiro, tentando brincar de piu. Um mix de :
-Ave Maria, cheia de graça o Senhor é convosco...-Piu!!!
-É você agora o piu!hahahha!!!Nem me pega!!!- Dizíamos isso e logo o barulho que causávamos era reclamado por nossas mães.
Lembro-me que quando vovó disse:
-É, ele foi um bom vizinho e muito trabalhador, apesar de ter sido raparigueiro e ter tido dois filhos fora do casamento Mariquinha num tem do que reclamar.
Eu saí correndo para a casa de vovó passando direto para a área de serviço onde tinha uma bacia verde musgo média, não hesitei, propicia para o meu tamanho peguei-a e sai em disparada. Meus primos então perceberam que o velho tinha morrido e começaram a gritar:
-Ah!! Assim não vale!! No roubo todo mundo ganha!!!
Eu desci a rua que nem bala pegava e do alto observei a casa de Maria raparigueira( deixo por conta da imaginação de vocês o porquê desse apelido) onde tinha um lindo pé de rosa amélia. Eu não pedi nem permissão a Maria e fui logo arrancando, confesso que sai machucada, levei umas duas espetadas dos espinhos, mas nada que uma boa lambida no sangue para cicatrizar(ouvi do meu pai uma vez que isso fazia bem e já viu, criança acredita em tudo que o adulto diz) e me dá um ar de revigorada para voltar a disputa.
Enquanto terminava de pegar as quatro rosas vi que meus primos já se aproximavam, todavia não desanimei e corri para a casa de Chica de zeca e gritei do terreiro:
-ô de casa!?
Recebi de resposta:
- ô de fora!?
- Dona Chica, vou tirar umas flores para enfeitar o caixão de zezão que acabou de falecer.
-Ah,minha filha! Zezão morreu mesmo? Que Deus o tenha! Bem que Isaura disse que ele passava das 5 horas.Naquele momento eram por volta das cinco e meia da tarde, sei disso porque o relógio da Igreja do Sagrado Coração de Jesus tinha batido recentemente.Pode tirar sim, fique à vontade! E sua vó, como está? Fez o remédio de tamarindo que ensinei a ela?
- Ta bem, deve ter feito.
Tudo o que eu mais queria naquele momento era arrancar o mais rápido possível as flores e ir embora, porém por educação tinha que responder.
-Obrigada, dona Chica!!
-Por nada!
Nisso, vi que os meninos já estavam na outra rua e com as bacias bem cheias, enquanto a minha tinha bem pouquinho. Apressei meus pequenos passos e consegui encher a bacia com umas flores que nunca soube o nome, afinal só sabia reconhecer a 'amélia' porque uma vez levei duas espetadas e mainha disse "-bicha lesada, sabe que rosa amélia tem espinho, pra quê vai bulir no que tá queto?". Voltei correndo para a casa de Zezão e por sorte cheguei primeiro, sendo esse o único dia em que as flores do defunto foram colocados pelo fruto do meu suor e principalmente esperteza. Sim, esse era o prêmio da brincadeira.