se atropelou
ao notar a vida
- carro do ano
crianças chiando
pais sem saco
férias de verão -
na contramão de um caminho
idealizado
enfim, conseguir dormir
dentro de si
a ouvir ecos
de sua própria raiva
que diferia do que pensava
numa perseguição
de um ponto rubro alaranjado
qualquer
despertou
embebido no sangue
que não era o seu
pétalas destroçadas
de uma margarida
nas mãos
o vento insensível
lambe as lombadas dos livros
num ato desastroso
derruba nossos tsurus
feito dos papéis
com notas de um futuro
leve como um sopro
febrilmente
os reposiciono
com atos desastrosos
enquanto espero
a janela fechar
choveu agora. enquanto você lia um livro que zombava com as lutas de classe dentro de um prédio num bairro chique de paris, chovia no lugar que um dia foi a sua cidade. o corpo dos seus ouvidos, recém habituados ao massacre físico dos ruídos de uma avenida movimentada dessa sua nova cidade, precipitou a fadiga causada pelo incansável ruído de fundo mas se percebeu massageado. você perdeu sim a atenção na leitura. não por uma sirene, mas sim por um poema cantado ao pé do ouvido. há quanto tempo que não ouvia a chuva conversar com o chão? foi pego de surpresa pois já não se lembrava dos sons das vozes de cada um. não se lembrava dos infinitos instrumentos que são criados e tocados em ritmos e tempos próprios. o rufar constante de alguma poça em frente ao carro estacionado na garagem. o martelar metálico em um único pedaço de calha desprotegido de telhas. o chiado das folhas agressivamente atingidas. os grandes tímpanos das montanhas reverberando distantes a cada novo trovão que caia. você já estava surdo para tudo isso e não sabia. demorou a assimilar novamente essa sinfonia de beleza eterna e cíclica. seu ouvir se acostumou ao modernismo dos gritos da feira de sexta-feira e ao pós-modernismos dos motores ruidosos dos ônibus articulados. aprendeu a apreciar a arte proveniente do cinza, mas se esqueceu de que o som da tua terra é maior. o som da tua terra traz cheiro. lembre-se que você pôde perceber o tema inicial da melodia ter a sua forma alterada através do vento desregulando o volume por vontade própria. esperou o interlúdio de silêncio passar como uma criança esperado a bolha de sabão ser soprada novamente só para fazê-la estourar. sentiu prazer em retornar ao que foi apresentado no início da obra. neste momento, percebeu que já não precisava mais da contemplação do jazz tanto assim. no dia seguinte, entrará no mesmo ônibus congelante, sentará na mesma poltrona trinta e três e seguirá para a mesma massa enfadonha esperando o metrô às sete da manhã. guardará as canções daqui e as escutará secretamente enquanto abre a porta do quarto e encontra, enrolada em lençóis bagunçados, três palavras que só o regresso pode escrever. da tua boca, o cheiro de chuva a despertará.
¿dónde estoy
en la tierra austral
dónde nadie
mira a nadie
sino buscándome
en tus guantes por siempre
desconocidas?
de onde eu vim, sirenes sempre precederam desgraças. eram cortes abruptos na rotina bucólica dos pássaros cantando.
enquanto tomo um café em meio aos zumbidos dos automóveis em uma lanchonete qualquer, novamente escuto as sirenes. carros sobem em desespero a avenida engarrafada por mais uma vez. em mim, cresce uma aflição não familiar a medida que o som aumenta somente por querer saber o que motivou aquele alarde sobre rodas. enquanto isso, o rapaz do outro lado do balcão continua comendo o seu pf ouvindo o garçom o entreter com gozações de futebol. os dois sorriem. minha mão começa a suar; minha cabeça se perde imaginando consequências nefastas para aquele chamado. um motoboy tomba em mais uma marginal ficando gravemente ferido. uma senhora sofre um infarto após uma tentativa de assalto bem-sucedida nos jardins. mais uma favela, curiosamente perto do brooklyn, pega fogo. explodiram um caixa eletrônico num banco da zona norte. tudo isso me vem a mente, enquanto o rapaz ao lado degusta um belo gole de coca-cola. respiro pausadamente e tomo um sofrido gole do café já frio. percebo, então, a natureza da indiferença que o fez sequer notar a passagem de todo o barulho há pouco. ele se sente em paz. de certa forma, o invejo e compreendo um pouco melhor esta cidade e suas sirenes. aqui, elas não precedem desgraças. as daqui nos condicionam auditivamente a reproduzir a sensação da segurança contida no concreto. a segurança branca, classe-média ordeira e masculina do concreto. aqui as sirenes são lembretes que nos mostram que a cidade-fábrica continua a operar corretamente para quem aceita com ignorância a sua própria condição. a ignorância de achar que um rosto desconhecido, automaticamente, deixa de representar um rosto; de que um bairro que nunca visitado não representa o conceito lar; de se pensar indivualmente um indíviduio.
as sirenes daqui são como os mosquitos que não nos deixam dormir: lutamos contra ou então cubrimos a cabeça com a ilusão do lençol.