Textos de Bernardo

a elegância das janelas abertas

as curvas nos colocavam nos caminhos como mãos em concha. ao redor um verde de mesma cor mas com significados diferentes para cada um. no fundo, ambos com algum saudosismo. saudade um, do tempo de adolescência gasto no trabalho por aquelas terras com a fazenda da família. o outro, dos retiros na infância sob a saia da avó enquanto se empanturrava com as delícias e corria de pés descalços pela praça com o resto da molecada. hoje, enquanto retomam essas estradas antigas por mais uma vez, os dois tem motivos de sobra para olhar para o verde e se lembrarem do passado. seguem no carro ao som de conversas amenas e música baixa. cada um contando para o outro algumas de suas próprias memórias. a última causada pelo telhado que cedeu na casa grande da antiga propriedade da família. o telhado colonial, suas ripas e caibros cederam em seu pico, reduzindo o desgastado alaranjado das telhas por um negro buraco vazado. pensamos nas chuvas, pensamos no sol, pensamos no desgaste e no pouco tempo de vida daquela casa. mas, se por um lado a sua proteção tinha cedido, havia ainda assim um ar de vida naquela casa. as janelas estavam abertas. janelas verdes levemente desgastadas que, com suas abas elegantes, se sobreponham a um branco hachurado. levando e trazendo o ar de uma época de cabeças, estas também, com seus respectivos telhados quebrados. o retrato daquilo que nós dois não fomos nos levava a lamentar não o futuro não trilhado, mas sim a existência daquilo que ao menos o possibilitou: nossos parentes. a herança se pôs silenciosamente em nossos colos enquanto seguíamos rumo a mais um almoço de natal. iríamos dividi-la, saboreá-la e então voltar para nossas casas protegidas.

coma induzido

se atropelou
ao notar a vida
  - carro do ano
    crianças chiando
    pais sem saco
    férias de verão -
na contramão de um caminho
idealizado
    
enfim, conseguir dormir

dentro de si
a ouvir ecos
de sua própria raiva
que diferia do que pensava
numa perseguição
de um ponto rubro alaranjado
qualquer

despertou
embebido no sangue
que não era o seu

pétalas destroçadas
de uma margarida
nas mãos

origamis

  o vento insensível
lambe as lombadas dos livros

num ato desastroso
  derruba nossos tsurus
  feito dos papéis
  com notas de um futuro
    leve como um sopro

febrilmente
  os reposiciono
  com atos desastrosos
    enquanto espero
    a janela fechar

lembrança a um futuro eu


choveu agora. enquanto você lia um livro que zombava com as lutas de classe dentro de um prédio num bairro chique de paris, chovia no lugar que um dia foi a sua cidade. o corpo dos seus ouvidos, recém habituados ao massacre físico dos ruídos de uma avenida movimentada dessa sua nova cidade, precipitou a fadiga causada pelo incansável ruído de fundo mas se percebeu massageado. você perdeu sim a atenção na leitura. não por uma sirene, mas sim por um poema cantado ao pé do ouvido. há quanto tempo que não ouvia a chuva conversar com o chão? foi pego de surpresa pois já não se lembrava dos sons das vozes de cada um. não se lembrava dos infinitos instrumentos que são criados e tocados em ritmos e tempos próprios. o rufar constante de alguma poça em frente ao carro estacionado na garagem. o martelar metálico em um único pedaço de calha desprotegido de telhas. o chiado das folhas agressivamente atingidas. os grandes tímpanos das montanhas reverberando distantes a cada novo trovão que caia. você já estava surdo para tudo isso e não sabia. demorou a assimilar novamente essa sinfonia de beleza eterna e cíclica. seu ouvir se acostumou ao modernismo dos gritos da feira de sexta-feira e ao pós-modernismos dos motores ruidosos dos ônibus articulados. aprendeu a apreciar a arte proveniente do cinza, mas se esqueceu de que o som da tua terra é maior. o som da tua terra traz cheiro. lembre-se que você pôde perceber o tema inicial da melodia ter a sua forma alterada através do vento desregulando o volume por vontade própria. esperou o interlúdio de silêncio passar como uma criança esperado a bolha de sabão ser soprada novamente só para fazê-la estourar. sentiu prazer em retornar ao que foi apresentado no início da obra. neste momento, percebeu que já não precisava mais da contemplação do jazz tanto assim. no dia seguinte, entrará no mesmo ônibus congelante, sentará na mesma poltrona trinta e três e seguirá para a mesma massa enfadonha esperando o metrô às sete da manhã. guardará as canções daqui e as escutará secretamente enquanto abre a porta do quarto e encontra, enrolada em lençóis bagunçados, três palavras que só o regresso pode escrever. da tua boca, o cheiro de chuva a despertará.

el deseo


¿dónde estoy
en la tierra austral
dónde nadie
mira a nadie
sino buscándome
en tus guantes por siempre
desconocidas?