Textos de Bernardo

sobre as liberdades que não precisei conquistar

a última muralha democrática:
      o corpo político
resiste

diferenças espalhadas
em batalhões de exércitos periféricos
aquartelados em siglas
de neologismos do eu
ainda gritam

soam as 300 falas sobre o ser
contra uma invasão bárbara

os imbecis já venceram
saqueiam o futuro
reescrevendo o passado
com piadas e falácias

se a história não existe,
só resta
      o outro
mais uma reprise
do inimigo clássico

as panelas voltaram a entornar o leite
e entre mortos e feridos,
criancinhas e museus,
o homem bom, necessariamente branco,
                             hétero,
                             classe média,
ainda crê em si como a partícula divina.
o seu corpo apolítico,
sua existência apocalíptica,
ainda crê nos impostos de renda,
nas academias 24 horas,
e que a vida é justa e boa

como ela era para o seu avô,
necessariamente branco,
                hétero,
                classe média

a última muralha democrática sofre,
mas resiste.
em seu último bastião:
existir e ser
      necessariamente livre

momentum contínuum

a cabeça
rolando
momentum contínuum

    você lembra daquela libélula?

rolante da escada
os pensamentos
pisados e amarelos
ralando nos pelinhos laterais

    coragem rente à água

rolando
tropeçando em pescoços
pensamentos se repetem
sobem e descem
o rolante da escada

    mergulhos e desafios à liberdade

do lado esquerdo
tropeça mais um
pensamento de que?
o rolante da escada
ralhado pelo pelinho
subindo e descendo

    a inveja das asas pelo chão

o pensamento
engargalado
na saída reta
da escada rolante
nem sobe e nem desce
permanece
no degrau que volta pra dentro
  e se perde

    você lembra daquela libélula?

liberdade em mim

sete silêncios
me prendiam

a voz que cria
os barulhou
um
a
um
até sobrar o maior de todos

                            eu

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quinhão

a hipocondríaca síndrome
de varandas gourmet
curando a fobia em ser assistido
por ninguéns

a segurança das lágrimas do lar
escondem um fracasso
exposto e esmagado
pelas horas do rush públicas

o pão e o vinho na santa ceia urbana
ter e possuir
garantem não mais a salvação,
mero detalhe cristão
o perdão maior numa metrópole
é exonerar-se do outro
              do roubo
              do novo
              do gozo

encarcerar-se em grades
blindar-se em vidros
resguardar-se em modas

tornar-se, enfim, propriedade e
cidadão
  - eventualmente de bem -
propriamente dito
e adquirido

              [dos lados de fora
               o eterno sonho do carnaval
               a nos velar]

sopros de lar

ilhados em silêncio,
nós dois perdidos
num mar de táxis amarelos

o emprego de navegantes
abrindo novas feridas
jorrando um sangue vivo
coagulando-se só quando em paz

a fuga
  o silêncio hemorrágico
em seu fim

nos cruzamentos dos olhares
os faróis da compreensão
se acendem e iluminam
a calmaria que nos permite velejar
por novas promessas

afluir por nosso mar
seguir às casas que inventarmos
para sempre curandeiras
de nossas dores e desejos