Textos de Bernardo

giroflex


de onde eu vim, sirenes sempre precederam desgraças. eram cortes abruptos na rotina bucólica dos pássaros cantando.

enquanto tomo um café em meio aos zumbidos dos automóveis em uma lanchonete qualquer, novamente escuto as sirenes. carros sobem em desespero a avenida engarrafada por mais uma vez. em mim, cresce uma aflição não familiar a medida que o som aumenta somente por querer saber o que motivou aquele alarde sobre rodas. enquanto isso, o rapaz do outro lado do balcão continua comendo o seu pf ouvindo o garçom o entreter com gozações de futebol. os dois sorriem. minha mão começa a suar; minha cabeça se perde imaginando consequências nefastas para aquele chamado. um motoboy tomba em mais uma marginal ficando gravemente ferido. uma senhora sofre um infarto após uma tentativa de assalto bem-sucedida nos jardins. mais uma favela, curiosamente perto do brooklyn, pega fogo. explodiram um caixa eletrônico num banco da zona norte. tudo isso me vem a mente, enquanto o rapaz ao lado degusta um belo gole de coca-cola. respiro pausadamente e tomo um sofrido gole do café já frio. percebo, então, a natureza da indiferença que o fez sequer notar a passagem de todo o barulho há pouco. ele se sente em paz. de certa forma, o invejo e compreendo um pouco melhor esta cidade e suas sirenes. aqui, elas não precedem desgraças. as daqui nos condicionam auditivamente a reproduzir a sensação da segurança contida no concreto. a segurança branca, classe-média ordeira e masculina do concreto. aqui as sirenes são lembretes que nos mostram que a cidade-fábrica continua a operar corretamente para quem aceita com ignorância a sua própria condição. a ignorância de achar que um rosto desconhecido, automaticamente, deixa de representar um rosto; de que um bairro que nunca visitado não representa o conceito lar; de se pensar indivualmente um indíviduio.

as sirenes daqui são como os mosquitos que não nos deixam dormir: lutamos contra ou então cubrimos a cabeça com a ilusão do lençol.

éter

na beirada do mundo
eu te vi
invisível
para os métodos científicos

quintessência presente
na dança dos planetas
nos micro espaços das migalhas de pão
sob o umbral desta porta
nos desejando

boa viagem
para o meu universo

caranguejo

minha língua
minha arma
a parte que mais te convém
te agarra
te fere

chafurdo
no mangue dos pensamentos
crendo-me ardiloso
ao te cobrir com minha lama
enquanto me caçavas
com tuas mãos cegas

mergulhos silenciosos
eu, paralisado

capturado e incapaz
miro com dois olhos
teu caminhar
distante

capturado e incapaz
te miro com dois olhos
de lado
para não perder
a vista do horizonte

we in the grayscale city

an animal
walks into you
you've gotten
the money
the smell
  another fine mess


três tragos de um cigarro imaginário numa caminhada de perder o ar. por outra vez ele se pergunta se há mais caos em si ou em são paulo. sobe uma ladeira, vira uma esquina, se desgasta por conta da pressa de chegar no cinza do outro antes que a cidade se imponha. dois sorrisos, não saber se posicionar na recente vida descoberta do outro em uma cozinha pequena e vitamina com sabores que nunca provou.

pensou em seus próprios novos sabores. pensou em como tem sido doce o sabor de si mesmo. pensou muito sobre aleatoriedades se desenrolando de maneiras concatenadas. até o barulho do avião que faz a ponte-aérea levando um casal qualquer para uma lua de mel no nordeste com escala no rio de janeiro interrompê-lo.

acende outro cigarro imaginário e vai trabalhar.

concerto para pianos tortos

são dois corpos nus, lado a lado, pressionando as teclas de um piano. uma cena idealizada para quem a vê de fora, um mundo concreto para quem o vê de dentro. dessas cenas sem um porquê de acontecer, afinal, são só um casal juntos por mais um entardecer ao lado de um piano, como tantos outros já o foram. ele se levanta e escolhe notas ao acaso, enquanto ela entende o ato como um desafio e se posta ao seu lado. nenhum dos dois hesita qualquer pudor. você sabe tocar? não, ela responde com uma vergonha disfarçada. ele encontra dois acordes que soaram agradáveis aos seus ouvidos e percebe um olhar curioso. monta uma valsinha qualquer, os repete e fala docemente: é só fazer o que quiser com as teclas brancas. ela sorri e começa a tatear cegamente pelas teclas de marfim. seguem tocando a valsa torta para ninguém além dos dois.

risos se mesclam ao ambiente.

brincam de achar padrões, de se descobrirem em timbres. mas, a medida que se conhecem musicalmente, uma aflição os contamina: qual será a próxima nota? ela rapidamente se entedia em seguir regras que desconhece - por que somente as teclas brancas se temos todas as outras? por que tamanha limitação? - e começa uma aventura perigosa pelo mundo negro dos sustenidos e bemóis. claramente aquelas andanças bicolores não soam atraentes ao mundo externo, mas, lembrem-se, aqui falamos do mundo concreto dos dois, do qual eu e você não entendemos nada de sua beleza.

respirações se mesclam ao ambiente.

ele entende cada dó sustenido fora do tempo como um convite para definir uma estrutura musical. sente-se importante, monta uma estratégia em sua cabeça e torce para que ela perceba os toques propositais do seu corpo no dela. os cotovelos e ombros sendo sempre a guiada delicada de sua mão direita, enquanto a cadência do tocar dos pés e das coxas são definidos pelo ritmo de sua mão esquerda. se embaralha com toda a coordenação motora exigida e erra por algumas vezes o tempo, mas sua parceira não percebe.

arquejos se mesclam ao ambiente.

ela percebe o mundo o suficiente para compreender os toques e desejar as mãos que os produzem. continua desobediente e, agressivamente, lança sua mão esquerda para começar compor as canções do corpo. a sua direita permanecia no piano reproduzindo um padrão de sol, lá e dó que havia encontrado a pouco. com a outra, acaricia as harpas dos cabelos dele ao mesmo tempo que as notas. eles se transformam em som. dois pares de olhos fechados em um diálogo lascivo composto de notas musicais. o volume se instaura em uma crescente, o grave se torna forte como o esperado e o agudo ganha a agilidade nos mesmos sol, lá e dó. a música sobrevive até seu último suspiro e num contratempo qualquer ela é interrompida por um prensar de várias teclas. o piano grita desafinadamente para que fiquem e silencia. uma última súplica dele, que havia ganhado afeição por aqueles dois corpos nus.

nesta tarde, aquele piano descobriu melodias que nunca pôde compor e permaneceu aberto como se as admirasse ao som ambiente.