Textos de Bernardo

o cão covarde

hesitei
em escrever aquele verso
já soterrado por outras lembranças
perdeu-se para sempre
mais um poema das saudades

hesitei
em utilizar aquele verbo
já desgastado por outras lembranças
ganhou-se para sempre
mais uma dama para as saudades

  não há esperança para os covardes
  nas poesias
  ou nas utopias

tem mas acabou

Lembranças o aquecem por dentro.
Mas, ao mesmo tempo, lembranças são capazes de estraçalhá-lo internamente.
--- Haruki Murakami

um endereço que se torna só um endereço
destinatário de compras online
e contas que não me importam mais

aquelas ruas tornam-se obras de arte
num museu particular
habitado por fantasmas
guardados em três por quatros
dentro da minha carteira

como olhar a fumaça do cigarro
  desfaz
    as casas os becos as ruas
    abrem novos espaços
  desfaz
constrói-se uma história própria

num ônibus de madrugada
uma direção
uma epifania
chamada casa

fome

no café da manhã eu penso na caneca do flamengo esquecida no escorredor faz algum tempo. no almoço, penso nos pratos que não comemos porque não tivemos tempos de aprender a cozinhá-los. no jantar, penso em como é estranho comer sem assistir a alguma reprise de seriado dos anos noventa. penso com a fome daquilo que já não existe mais. nesse apetite pelo vazio, vejo as mil dimensões românticas que pude criar em cada uma das refeições. enxergo cada uma e mergulho assim como mergulhava quando criança nos meus eus multiplicados pelos espelhos das barbearias de minha cidade. encontro em cada uma delas apenas um vestígio decrescente do que sou - ou melhor - do que poderia ser, até por fim me tornar nada mais que um ponto distante e irreconhecível.

na primeira imagem, fica clara a proximidade com a realidade; meu cabelo está ali, minhas rugas, sua sombra. na primeira, ainda consigo sentir vergonha do meu olho esquerdo meio fechado e ainda acho graça do jeito que você pronuncia meu nome. na segunda, em que encaro minha nuca, já não tenho mais as dúvidas de ontem e os contornos da minha boca não desenham senão um sorriso vacilante de quem não tem com o que se preocupar enquanto você assiste tv deitada em meu colo. da terceira para a frente, somos formados por contornos que nos desenham de maneiras idealizadas, voluptuosas, irresponsáveis. só nos interessa nós mesmos em pontos e caminhos infinitos que não nos levam a lugar nenhum.

penso e uma voz me salva do transe. uma pedra invadindo os espelhos e deixando somente os cacos refletindo os fragmentos daquilo que me sobrou. um restaurante, uma mesa para um e um cardápio na mão. é o garçom quem me pergunta qual prato eu desejo e não sei o que pedir. hesito e não invento mais.

peço um arroz com filé e fritas para viagem.

da arte de observar besouros pela noite

abster-se de objetivos. voar a esmo em um trajeto circular centrado em uma fonte de calor e luz. não se importar com concorrentes. aprender a descobrir o salto no vazio. aprender a descobrir superfícies duras em colisões frontais. retrair as patas como proteção em luta com inimigos maiores. demonstrar as garrinhas como um último ato de rebeldia quando os maiores te capturam. defender-se de quedas bruscas. aceitar que quedas bruscas acontecem. agonizar por estar inerte em um mundo de cabeça para baixo. lutar para virar. sucumbir ou virar. virar. descansar após grandes batalhas. esperar o dia raiar sabendo que ele irá chegar. voltar para casa.

chegou a noite. no telefone, a voz do outro lado da linha ainda não entendia o que se passava ao ouvir:

eu voltei

farsas daquele dia escuro

na face
do dado
o número
pelo acaso
guardado

na face
do rosto
o futuro
pelo tapa
imposto

em face
ao susto
a solidão
de um orgulho
robusto

na face
do dado
o caminho
pela sorte
trilhado

fim da fase
    das farsas
    dos tapas