nos perpetuamos, enfim, desbravadores. os mares perderam os monstros que nos metiam medo; as florestas e desertos cederam espaço para rodovias; por vezes as nuvens se tornam poeiras sob nossos pés. fomos tão audaciosos que até por baixo de prédios, pares de sapatos e mendigos dormindo viajamos sem sequer nos sujar de terra. não temos mais medos de grandes quilometragens. afinal, o que se tornaram os quilômetros senão linhas retas num mapa apresentado na tela de um computador de bordo? reaprendemos a calcular distâncias utilizando horas, dias no máximo. mas, se agora habitamos o reino do em breve, daqui a pouco, até amanhã, o que fazer com as palavras do tempo? onde ficam as palavras como infinito, sempre, nunca, perene? pois estas já não servem como nossas novas unidades de medidas. estas palavras, a partir de agora, ganham novos contornos e se tornam um território selvagem, inóspito e que em nós, bandeirantes preguiçosos, nos mete medo. tornou-se perigoso explorar estas terras quando municiado apenas com a leviandade do instantâneo, a pressa pelo amanhã. bichos e feras nos espreitam, guardando um bote certeiro de frustrações e traumas, ao invadirmos seus reinos despreparados. é necessário um facão afiado com coragem e coerência para poder adentrá-las. saber silenciar o tempo e ter a calma para escutar cada uma de suas letras sendo pronunciadas pelo frescor de suas matas. ouvir os silvos de seus pássaros, observar os feixes de luz vencerem por entre o balançar das folhas. contemplar nós mesmos. os que tentam vencê-las são os bandeirantes do tempo. desinteressados pela distância horizontal, buscam sim a vertical, a profundidade em nós mesmos. a profundidade infinita na queda livre por entre singelos olhares trocados. encontram as velhas novas escrituras e as decifram. não precisam mais dizê-las aos quatro cantos, mas fazem-se sábios trazendo dentro de si todos os seus significados. trazem dentro de si distâncias enormes. silenciosamente enormes.
esses caracteres em um papel não sabem nada de quem os carrega. determinam horários a serem seguidos, portões a serem encontrados, poltronas a serem ocupadas. números, letras, horas. caracteres frios que definem pontos iniciais e finais sem saberem do que há de mais importante. há sempre o caminho. as passagens aéreas são insensíveis por não saberem nunca dos encontros e partidas que carregam em si mesmas. são meros pedaços de papéis que fornecem a entrada para os sonhos ou a saída dos mesmos. essa poltrona 23a nunca saberá o que carrego no peito. este vôo de quatro números que não consigo decorar mal sabe de outra importância sua que não a linha reta entre recife e rio sem escalas. seguimos para a fila de embarque com uma calmaria incoerente para este horário da madrugada. em minha frente há tantos futuros a serem construídos e atrás de mim, tantos passados a serem esquecidos. me situo num ponto cego que abandona um presente ideal num táxi qualquer e segue esperançoso pelo carinho de um pacote de amendoins. não indiferente, apenas positivista. minha identidade encardida e uma mochila carregada de bolos de rolo são o que o mundo acha que carrego comigo. há, no entanto, a bagagem invisível repleta de sentimentos que fugiram ao check-in com a moça simpática. embarco como um terrorista. granadas de saudades implosivas, pólvora espalhada pelos lábios. minha carteira não me denuncia em nada e, agora, a apatia e indiferença do meu bilhete compensam por não levantarem suspeitas. dou um boa noite sem graça. vejo da janela pequena as luzes da pista, do aeroporto, do bairro, da praia. as luzes que só eu vi. penso em dormir, mas prefiro ver a cidade se afastar.
construo um passado em uma velocidade de oitocentos quilômetros por hora para a moça de biquíni que só vê o ponto que me transporta no céu se movendo lentamente. cada respiro das turbinas me coloca em um futuro linear, semeando o passado com o rastro do avião para deixar florescer sentimentos. na medida que chegam novos fatos, os mais antigos se colocam ainda mais distantes e a luz de suas memórias segue se ofuscando. lembrar de algo, de alguém, é como olhar para uma estrela. o brilho que permanece é o brilho dos sentimentos que perduraram perante a passagem do tempo e guardam distância da existência concreta do que foram. é como a luz da estrela sendo sempre o passado e nunca o que se é de fato no presente. possivelmente o passado de um corpo celeste já morto no presente. nossas memórias, nossos carinhos por nossas memórias, formam nossas próprias constelações. se o universo cósmico está em constante expansão, também assim se encontra o meu - particular, por sua vez - se expandindo com o auxílio de um boeing. meus corpos celestes emanam luz sob a forma de palavras. sou um sol que define seu espectro através da escrita. me torno fácil de ler, de perceber através das variações de adjetivos, substantivos e outras classificações que já não me lembro. minha matéria é a matéria das estrelas. minha matéria é a poesia. a poesia muda minha densidade, me torna translúcido e só assim posso perceber como a refração causada atinge o rosto da senhora bonita por entre o espaço das duas poltronas da frente. ela não sabe do roubo de um pouco de sua luz por estas frases. escrevo agora as palavras emanadas por ela através de sua elegância, avidez e ternura denunciadas por seus olhos enquanto lê versos de manoel de barros. gostaria de dizer que me chamo bernardo. que há uma constelação dentro de mim. que há uma galáxia dentro dela. que nossos campos gravitacionais se aproximam. ela lê manoel de barros e eu me chamo bernardo. talvez o universo tenha começado assim: explodindo a partir de um verso de manoel de barros.
me guarde no bolso da frente da tua minissaia rosa. me guarde bem apertadinho com a tua coxa. só deixe essa camadinha têxtil me separando do giz da tua pele. me guarde na esperança de que eu toque. que eu toque para te dizer "bom dia" sem saber que minhas palavras vibrarão em tua coxa. te fazendo pensar em como deseja a vibração nos lábios daquelas palavras. deseje sim, eles próprios a vibrarem ali. transpire, sue, ofegue. me guarde no pensamento do próximo toque. na expectativa da próxima visita. no sonho da próxima esquina. guarde no futuro, no bolso que guarda o papel, a expectativa do toque.
hoje avistei um jipe militar na orla de copacabana. era um domingo de sol, me disseram que ia dar praia e acreditei. desci de sunga e com a vontade de ser feliz e nada mais. pensei na inocência de um biscoito globo. mas, no meio do caminho, havia um jipe militar. um jipe sem capota, como que para um desfile qualquer, sustentando um moço qualquer de seus cinquenta anos com uma boina vermelha. aquela boina existia na época dos jipes militares? aquele moço existia na época dos jipes militares? na época dos jipes militares, eu não existia, mas existiam aqueles que me contaram as histórias de sangue e lágrimas. sangue vermelho, da boina vermelha, da aversão vermelha. sob gritos insensatos, sob brados dissonantes, caminhei. se não nós, quem mais há de caminhar em direção à praia? me tornaram surdo os gritos absurdos, me tornaram cego as letras ofensivas, mas não me tornaram mudo. caminhei porque temos de passar, temos de buscar o mar. talvez o quanto antes. ouvi verdades, ouvi mentiras, ouvi verdadeiras atrocidades. mas pude ver um jipe militar, bem parecido com o jipe do meu avô, mas sem a inocência dos jipes da roça. o motor rangia a autoridade dos generais, os faróis ditavam a violência, os para-choques declaravam as invasões, os pneus sustentavam as opressões. os jipes não permitem a discordância. o silêncio causado pelas buzinas era burro. burro. burro. burro. mas, em meio a tudo, caminhei porque temos de passar. caminhei, e do mar pude ver a avenida em fogo vivo. hoje, a princesinha do mar se reencontrou, inclusive, com seu tom monarquista. haviam boinas no lugar de biquínis, quepes no lugar de óculos escuros. hoje havia um jipe de guerra, em pleno domingo de sol pela avenida atlântica.