eu nasci por entre as montanhas da serra fluminense. aprendi desde pequeno que o sol se põe mais cedo por aqui. os picos, os morros, as montanhas, tão belamente altas, rivalizam com o céu e deitam sombra pela cidade ao bel-prazer de eles próprios. aprendi desde cedo que, aqui, nós sempre fomos reféns das montanhas. cresci sem saber o que é horizonte. para olhar o céu, tinha que inclinar o pescoço e buscá-lo por entre as muitas nuvens. buscar ar para respirar para fora daquelas sufocantes grades cobertas de musco e verde. era preciso querer ver o céu. durante o inverno, ele se escondia sobre as neblinas que davam um ar de pudor às pedras e silenciavam os pedidos que imaginávamos subir aos céus. era preciso imaginar ver o céu. ele não era tratado como um brinde compensador, como se dado de graça no final de festa de aniversário de um ano. havíamos de querer notá-lo para sabê-lo, na minha terra. era preciso vencê-la. portanto, talvez minha terra não seja de grandes vislumbramentos, mas sim de uma constante de esperança. onde há montanhas, há topo. há um limite a ser rompido. há outra visão. era no cocuruto das pedras que podíamos transver nossa terra. olhar para nós mesmos com a arrogância das pedras que veem tudo. olhar para baixo e ver o vale, o contorno das ruas, o lugar onde me deitava para ver o céu. de lá de cima, tudo era horizonte. tudo era possibilidade. eu me pensava nuvem.
quando fui morar com o mar, me afoguei. havia horizonte demais para mim. eu. eu que sempre fui pedra.
papéis, mochilas e malas estão mais ansiosos com o reencontro do que nossas pernas. nossas pernas talvez só estejam aflitas. afinal, serão elas as responsáveis por não nos deixar desabar quando dados os abraços. já esses objetos inanimados sabem que todas as atenções estarão voltadas para eles. no reencontro, as mãos precisam se ver livres para tocarem o que tanto esperaram. querem logo fazer casa por volta da cintura ou no valezinho da nuca. os dedos a sonhar por refazerem os caminhos já descobertos no passado, mas sempre atentos para quaisquer mudança de rota. para isso, cairão por terra dando início à cena dos objetos que caem. o momento de ouro onde o medo da altura, até de quebrar por ventura, já não pesa mais nada para estes objetos que se sabem importantes. todas as palavras escritas e mudas de roupas seguiram seus caminhos para isto, para este momento. no início, a soltura, aquele pequeno frio no estômago que só as verdadeiras montanhas russas são capazes de reproduzir. e então, numa fração de segundos acelerados pela insensível gravidade, tudo já está acabado e os aplausos inaudíveis já estão a ressoar. permanecem calados no chão, estáticos, a apreciar o resto do espetáculo que passa a acontecer bem longe deles. os murmúrios e suspiros se vão junto com os corpos. só ficam o chão aquecido pelo calor dos dois pares de pés e os objetos inanimados, agora, contentes por encarnarem tão bem seus personagens. abaixam-se as colchas. as luzes se apagam. a platéia já partiu.
amores com passagens de volta não foram feitos para utopias. pelo menos não para as tradicionais. não há tempo hábil para filhos, já que em noves meses existem incontáveis indas e vindas. não há espaço para vestidos brancos e músicas emocionantes, já que os pais não compartilham o conceito de lar. não há espaço para casa pois não se sabe onde é a casa em si. o tempo é sabido por completo, do início ao fim. principalmente o fim. para um amor com passagem de volta, há de se interessar mais não ter planos. toma-se tempo o ato de criar planos, fazê-los crescer e maturá-los com a realidade imposta. tempo que não cabe na medida das despedidas. para um amor com passagem de volta, não valem engarrafamentos, a não ser quando acompanhado. aí, então, descobre-se que não há hora ou lugar para beijos ou abraços quando sabe-se o fim. fila de banco, demoras do garçom, a internet que não volta... tudo que nos faça perceber o tempo parado se torna muito mais interessante do que qualquer filme cultuado ou café da manhã na cama. os amores com passagens de volta possuem cúmplices não em declarações, em cartas ou amigos, mas sim nos taxistas, nas senhoras na fila do pão ou companheiros de elevador. as pessoas que fazem o tempo não passar são os padrinhos dos amores com passagem de volta. todos estes tornam-se provas vivas da fugacidade que compõe os amores com passagens de volta. os amores com passagens de volta não foram feitos para utopias. pelo menos não para as que já tive. aprendo a construir novas no saguão de embarque. as componho em minha cabeça. de novo e de novo.
homens e pêlos. uma relação de maturidade. primeiro os que surgem na cabeça e trazem junto as descobertas. no primeiro andar, a primeira partida. nas primeiras palavras, as primeiras lágrimas. surgem os primeiros traços daquilo que ele será a medida com que some aquela área branca, disforme e desprotegida que declarava a inocência. os cabelos são a morte da inocência. descobrimos que existem penteados onde antes não havia nada. descobrimos a futilidade nos cabelos. depois vem o resto do corpo naquela sensação desconfortável de enfrentar o desconhecido. a sensação que morre ao descobrirmos o fracasso em nos controlarmos. a morte da inocência da eternidade. percebemos que o nosso corpo é, senão, mera ferramenta para nós mesmos. barba, cabelo e bigode a nos desafiar todos os dias perante hoje o espelho sustentando aquilo que queremos esquecer ou, no mínimo, ignorar. hoje, dos seios de uma mãe negra, nasceu mais um dos guerreiros que marcham sempre ao ponto final. ele surgiu como os outros, encaracolado, teimando em machucar meus olhos e irreproduzível no que diz respeito a posições. um bastardo louvando um hino solitário e de tom diferente de seus irmãos. guardei tanto afeto por esse ser solitário, desejando que, por ventura, seu clã se multiplicasse em minha fértil lavoura capilar. tenho afeto por seres solitários e fios brancos. fios brancos talvez combinem com casas vazias, vinhos e partidas. a morte da inocência de que viveram felizes para sempre.
hoje acordei com um texto lindo na cabeça. era sobre a minha avó. sobre uma frase que ela me falava num sonho que tive. um sonho em que ela me aconselhava. ando precisando de conselhos de avó ultimamente. um texto sobre uma resposta bonita, poética, que eu criava para respondê-la e como ela se orgulhava de mim. um texto que esqueci, sobre uma frase que minha avó me disse num sonho que esqueci. um texto sobre a voz da minha avó, que esqueci. sobre como era ouvi-la na varanda do segundo andar, enquanto esperávamos o almoço ficar pronto. um texto sobre como é esquecer o hábito de comentar a vida alheia como se nos importasse. esquecer como é estar do lado daqueles que fazem com que o alheio seja desimportante. preciso de conselhos de avó. preciso repetir pratos quando já satisfeito.
acordei para esquecer as palavras que queria vir a lembrar mais tarde, ao encarar esta página em branco.
hoje acordei com um texto lindo na cabeça. um texto para lembrar de minha avó. para despertar.