Textos de Bernardo

no saguão de embarque

amores com passagens de volta não foram feitos para utopias. pelo menos não para as tradicionais. não há tempo hábil para filhos, já que em noves meses existem incontáveis indas e vindas. não há espaço para vestidos brancos e músicas emocionantes, já que os pais não compartilham o conceito de lar. não há espaço para casa pois não se sabe onde é a casa em si. o tempo é sabido por completo, do início ao fim. principalmente o fim. para um amor com passagem de volta, há de se interessar mais não ter planos. toma-se tempo o ato de criar planos, fazê-los crescer e maturá-los com a realidade imposta. tempo que não cabe na medida das despedidas. para um amor com passagem de volta, não valem engarrafamentos, a não ser quando acompanhado. aí, então, descobre-se que não há hora ou lugar para beijos ou abraços quando sabe-se o fim. fila de banco, demoras do garçom, a internet que não volta... tudo que nos faça perceber o tempo parado se torna muito mais interessante do que qualquer filme cultuado ou café da manhã na cama. os amores com passagens de volta possuem cúmplices não em declarações, em cartas ou amigos, mas sim nos taxistas, nas senhoras na fila do pão ou companheiros de elevador. as pessoas que fazem o tempo não passar são os padrinhos dos amores com passagem de volta. todos estes tornam-se provas vivas da fugacidade que compõe os amores com passagens de volta. os amores com passagens de volta não foram feitos para utopias. pelo menos não para as que já tive. aprendo a construir novas no saguão de embarque. as componho em minha cabeça. de novo e de novo.

as mortes das inocências

homens e pêlos. uma relação de maturidade. primeiro os que surgem na cabeça e trazem junto as descobertas. no primeiro andar, a primeira partida. nas primeiras palavras, as primeiras lágrimas. surgem os primeiros traços daquilo que ele será a medida com que some aquela área branca, disforme e desprotegida que declarava a inocência. os cabelos são a morte da inocência. descobrimos que existem penteados onde antes não havia nada. descobrimos a futilidade nos cabelos. depois vem o resto do corpo naquela sensação desconfortável de enfrentar o desconhecido. a sensação que morre ao descobrirmos o fracasso em nos controlarmos. a morte da inocência da eternidade. percebemos que o nosso corpo é, senão, mera ferramenta para nós mesmos. barba, cabelo e bigode a nos desafiar todos os dias perante hoje o espelho sustentando aquilo que queremos esquecer ou, no mínimo, ignorar. hoje, dos seios de uma mãe negra, nasceu mais um dos guerreiros que marcham sempre ao ponto final. ele surgiu como os outros, encaracolado, teimando em machucar meus olhos e irreproduzível no que diz respeito a posições. um bastardo louvando um hino solitário e de tom diferente de seus irmãos. guardei tanto afeto por esse ser solitário, desejando que, por ventura, seu clã se multiplicasse em minha fértil lavoura capilar. tenho afeto por seres solitários e fios brancos. fios brancos talvez combinem com casas vazias, vinhos e partidas. a morte da inocência de que viveram felizes para sempre.

despertador

hoje acordei com um texto lindo na cabeça. era sobre a minha avó. sobre uma frase que ela me falava num sonho que tive. um sonho em que ela me aconselhava. ando precisando de conselhos de avó ultimamente. um texto sobre uma resposta bonita, poética, que eu criava para respondê-la e como ela se orgulhava de mim. um texto que esqueci, sobre uma frase que minha avó me disse num sonho que esqueci. um texto sobre a voz da minha avó, que esqueci. sobre como era ouvi-la na varanda do segundo andar, enquanto esperávamos o almoço ficar pronto. um texto sobre como é esquecer o hábito de comentar a vida alheia como se nos importasse. esquecer como é estar do lado daqueles que fazem com que o alheio seja desimportante. preciso de conselhos de avó. preciso repetir pratos quando já satisfeito.

acordei para esquecer as palavras que queria vir a lembrar mais tarde, ao encarar esta página em branco.

hoje acordei com um texto lindo na cabeça. um texto para lembrar de minha avó. para despertar.

o cão covarde

hesitei
em escrever aquele verso
já soterrado por outras lembranças
perdeu-se para sempre
mais um poema das saudades

hesitei
em utilizar aquele verbo
já desgastado por outras lembranças
ganhou-se para sempre
mais uma dama para as saudades

  não há esperança para os covardes
  nas poesias
  ou nas utopias

tem mas acabou

Lembranças o aquecem por dentro.
Mas, ao mesmo tempo, lembranças são capazes de estraçalhá-lo internamente.
--- Haruki Murakami

um endereço que se torna só um endereço
destinatário de compras online
e contas que não me importam mais

aquelas ruas tornam-se obras de arte
num museu particular
habitado por fantasmas
guardados em três por quatros
dentro da minha carteira

como olhar a fumaça do cigarro
  desfaz
    as casas os becos as ruas
    abrem novos espaços
  desfaz
constrói-se uma história própria

num ônibus de madrugada
uma direção
uma epifania
chamada casa