1964 - 2015

hoje avistei um jipe militar na orla de copacabana. era um domingo de sol, me disseram que ia dar praia e acreditei. desci de sunga e com a vontade de ser feliz e nada mais. pensei na inocência de um biscoito globo. mas, no meio do caminho, havia um jipe militar. um jipe sem capota, como que para um desfile qualquer, sustentando um moço qualquer de seus cinquenta anos com uma boina vermelha. aquela boina existia na época dos jipes militares? aquele moço existia na época dos jipes militares? na época dos jipes militares, eu não existia, mas existiam aqueles que me contaram as histórias de sangue e lágrimas. sangue vermelho, da boina vermelha, da aversão vermelha. sob gritos insensatos, sob brados dissonantes, caminhei. se não nós, quem mais há de caminhar em direção à praia? me tornaram surdo os gritos absurdos, me tornaram cego as letras ofensivas, mas não me tornaram mudo. caminhei porque temos de passar, temos de buscar o mar. talvez o quanto antes. ouvi verdades, ouvi mentiras, ouvi verdadeiras atrocidades. mas pude ver um jipe militar, bem parecido com o jipe do meu avô, mas sem a inocência dos jipes da roça. o motor rangia a autoridade dos generais, os faróis ditavam a violência, os para-choques declaravam as invasões, os pneus sustentavam as opressões. os jipes não permitem a discordância. o silêncio causado pelas buzinas era burro. burro. burro. burro. mas, em meio a tudo, caminhei porque temos de passar. caminhei, e do mar pude ver a avenida em fogo vivo. hoje, a princesinha do mar se reencontrou, inclusive, com seu tom monarquista. haviam boinas no lugar de biquínis, quepes no lugar de óculos escuros. hoje havia um jipe de guerra, em pleno domingo de sol pela avenida atlântica.

no leito

janelas de hospital são soberanas. sempre abertas para nos trazer os novos sopros da vida que é o lado de fora. limpar o ar carregado das ansiedades concentradas nas bolsas de soro, das preocupações aderentes dos esparadrapos, dos medos circulando nas veias ainda não encontradas. entram por entre os vãos milimétricos da grade de proteção, os sonhos mais banais que só temos quando nos deitamos em camas reguladas por controles remotos. um prato, um livro, uma calçada... de dentro da televisão, a voz funciona como um marca passo para nos percebermos ainda como parte de um mundo, mesmo como passivos telespectadores. pacientes. mas o que interessa aos olhos é a tela da janela. rompê-la, saltá-la, reencontrar-se com a realidade. um corpo rebelde ao entender que é necessário fugir do mito da caverna da morte. é necessário seguir. nessa tarde bucólica, nesse inverno que é quase um veranico, é fácil para um bem-te-vi se tornar um protagonista. ele chega manso, planando levemente e pousa no peitoril singing an old, old beatles song. silencia o mundo mono tonal ao redor de um monitor cardíaco. aquele pássaro rompe a monotonia da paisagem estática da janela. nos desafia. é a metamorfose de nossos sonhos múltiplos em um ser vivo, animal. aquele pássaro nos instiga. nos faz perceber que é preciso levantar vôo para também cantar. nos transformar em pássaro para voar no mundo que nos restar. cantar por outras janelas. it's a long way.

Interrogações, 6º movimento

Por que me visto?
Desisto do abraço?
Traço vidraças?
Taças de vinho?
Vizinho ainda existe?
Triste é querer?
Shopenhauer tinha razão?
Contemplação salvará?
Vibrará a vida?
Saída para a morte?

Interrogações, 5º movimento

Por que tenho costumes?
Lumes são?
Terão algo a oferecer além do eterno retorno?
Contorno como no pálido langor?
Amor irá insolar sem dor?
Flor de onde brotará na estrada?
Sobreviverá sem culto definido?
Gemido será trilha sonora?
Chora aquele que não dorme na rede?
Parede traz proteção ou véu?
Pincel sem tinta?
Pinta a mão vedada?
Enfaixada?
Levada por ninguém?
Alguém já ignorou miragens?
Margens não podem ser pontes?
Horizontes destinados ao infinito?
Grito ou suspiro?
Giro até quando?
Respirando sem sei?
Irei publicar o que errei?
Levarei adiante o instante?
Restante do que se desfez?

Interrogações, 4º movimento

Por que as estrelas se ausentam?
Ventam para outros olhares?
Lares a acolhem?
Escolhem as mais brilhantes?
Distante do vulgo?
Alugo o que enquanto me abandonam?
Desmoronam minhas inspirações?
Solidões encorpadas?
Nadas sofisticados?
Quadrados floridos?
Sorrisos terão coragem de abrir as cortinas sem peça?
Tropeça quem começa ensaiando?
Remando como Montaigne?
Quem dirá que a forma do mundo nunca se quebrará?
Levará quanto tempo o homem para se fragmentar?
Brincar de colar?
Preocupar-se em não mais se lembrar?
Colocar a cachoeira na beira do lar?