cosmos

construo um passado em uma velocidade de oitocentos quilômetros por hora para a moça de biquíni que só vê o ponto que me transporta no céu se movendo lentamente. cada respiro das turbinas me coloca em um futuro linear, semeando o passado com o rastro do avião para deixar florescer sentimentos. na medida que chegam novos fatos, os mais antigos se colocam ainda mais distantes e a luz de suas memórias segue se ofuscando. lembrar de algo, de alguém, é como olhar para uma estrela. o brilho que permanece é o brilho dos sentimentos que perduraram perante a passagem do tempo e guardam distância da existência concreta do que foram. é como a luz da estrela sendo sempre o passado e nunca o que se é de fato no presente. possivelmente o passado de um corpo celeste já morto no presente. nossas memórias, nossos carinhos por nossas memórias, formam nossas próprias constelações. se o universo cósmico está em constante expansão, também assim se encontra o meu - particular, por sua vez - se expandindo com o auxílio de um boeing. meus corpos celestes emanam luz sob a forma de palavras. sou um sol que define seu espectro através da escrita. me torno fácil de ler, de perceber através das variações de adjetivos, substantivos e outras classificações que já não me lembro. minha matéria é a matéria das estrelas. minha matéria é a poesia. a poesia muda minha densidade, me torna translúcido e só assim posso perceber como a refração causada atinge o rosto da senhora bonita por entre o espaço das duas poltronas da frente. ela não sabe do roubo de um pouco de sua luz por estas frases. escrevo agora as palavras emanadas por ela através de sua elegância, avidez e ternura denunciadas por seus olhos enquanto lê versos de manoel de barros. gostaria de dizer que me chamo bernardo. que há uma constelação dentro de mim. que há uma galáxia dentro dela. que nossos campos gravitacionais se aproximam. ela lê manoel de barros e eu me chamo bernardo. talvez o universo tenha começado assim: explodindo a partir de um verso de manoel de barros.

cep 20.000

no metrô zona sul
de ouvidos fechados
ouvi uma pessoa declamando poesia

ele era
  homem
  branco
  limpo

declamou
  uma atrás da outra
    drummond
    leminski
  até uma
    dele mesmo

que poesia há
em suas palavras
  másculas
  brancas
  limpas?

    a poesia de ouvidos
    tão fechados quanto os meus.

bolso

me guarde no bolso da frente da tua minissaia rosa. me guarde bem apertadinho com a tua coxa. só deixe essa camadinha têxtil me separando do giz da tua pele. me guarde na esperança de que eu toque. que eu toque para te dizer "bom dia" sem saber que minhas palavras vibrarão em tua coxa. te fazendo pensar em como deseja a vibração nos lábios daquelas palavras. deseje sim, eles próprios a vibrarem ali. transpire, sue, ofegue. me guarde no pensamento do próximo toque. na expectativa da próxima visita. no sonho da próxima esquina. guarde no futuro, no bolso que guarda o papel, a expectativa do toque.

90 - 180 - 270 - 360

O globo gira em volta de seu eixo e me encontro parada no mesmo lugar. Não é somente mais um momento da vida, mas aquela que tomamos por donos. O destino, uma vez tão metodicamente traçado, se inicia. Um dois, quatro, quinze amores. Nomes que se confundem, histórias que se misturam. Já não se sabe mais quem ou como veio. Mas vieram. E ao seu ritmo e com as devidas marcas deixadas, se foram.
Gira (90).
Mede-se em graus o que jamais saberia dizer em tempo. Alguns vieram e perduraram o que eu diria ser meses e na verdade, duraram dias. A memória mais antiga, tal como confetes, aglomerava-se nas páginas. Até então, tímido e coberto de orgulho e rancor, eu não buscava entender o porquê. Eis em seguida alguém que me pareceu exótico. Me entreguei e quando vi, já não mais. Uma linha. I’m sorry my dear, but that’s all you get.
Meia volta (180).
E parte da mudança, tal almejada, veio. E que felicidade, meu velho amigo, que felicidade. Uma vitória tão minha como há muito não sentia. Independência? Prisão? Ainda não sei, tudo tão recente. Essa vitória me arrastou para o que parecia tão longe e irreal. Você retornou às lembranças e dessa vez, reconheci e te chamei pelo nome. No vazio e no lidar comigo mesma, busquei no passado tudo que não pudesse me deixar só e agradeci por pensar em você naquela hora. Cogitei tanto em te procurar. Escrevi postais nunca enviados. Busquei conchas nas praias de água doce e batizei com os nomes de cada um dos amores risíveis que lá criei, só para matar o tempo. Numa surpresa, aquele mesmo rapaz, nosso elo mais forte, me trouxe algo que não esperava mais encontrar. Um sorriso sincero, três noites de paz. Um pouco mais que um sussurro, uma felicidade tímida. E também, já não mais.
(270).
 Superei, porque eles, todos eles, nunca foram. Pensei hoje, num dos jogos que tanto faço entre as caminhadas, se eu escrevesse uma carta há cada concha. Um segredo sussurrado a se compreender somente quando encostadas no ouvido. Pessoal e compreensível somente a aquele a quem foi predestinado. Todos, tão curtos. Já a sua... a sua narrava o oceano todo.
A volta completa (360).
Um giro ao globo, para retornar ao mesmo lugar.

1964 - 2015

hoje avistei um jipe militar na orla de copacabana. era um domingo de sol, me disseram que ia dar praia e acreditei. desci de sunga e com a vontade de ser feliz e nada mais. pensei na inocência de um biscoito globo. mas, no meio do caminho, havia um jipe militar. um jipe sem capota, como que para um desfile qualquer, sustentando um moço qualquer de seus cinquenta anos com uma boina vermelha. aquela boina existia na época dos jipes militares? aquele moço existia na época dos jipes militares? na época dos jipes militares, eu não existia, mas existiam aqueles que me contaram as histórias de sangue e lágrimas. sangue vermelho, da boina vermelha, da aversão vermelha. sob gritos insensatos, sob brados dissonantes, caminhei. se não nós, quem mais há de caminhar em direção à praia? me tornaram surdo os gritos absurdos, me tornaram cego as letras ofensivas, mas não me tornaram mudo. caminhei porque temos de passar, temos de buscar o mar. talvez o quanto antes. ouvi verdades, ouvi mentiras, ouvi verdadeiras atrocidades. mas pude ver um jipe militar, bem parecido com o jipe do meu avô, mas sem a inocência dos jipes da roça. o motor rangia a autoridade dos generais, os faróis ditavam a violência, os para-choques declaravam as invasões, os pneus sustentavam as opressões. os jipes não permitem a discordância. o silêncio causado pelas buzinas era burro. burro. burro. burro. mas, em meio a tudo, caminhei porque temos de passar. caminhei, e do mar pude ver a avenida em fogo vivo. hoje, a princesinha do mar se reencontrou, inclusive, com seu tom monarquista. haviam boinas no lugar de biquínis, quepes no lugar de óculos escuros. hoje havia um jipe de guerra, em pleno domingo de sol pela avenida atlântica.