Potinho de Escovas

Tudo que restou foi jogado fora.
  Nós parados e sorrindo,
  as notas e os nossos sons,
  as letras e declarações trocadas,
não estão mais aqui para serem
guia rápido e atalho para saudades.
Tudo, tudo foi jogado fora.
  Exceto sua escova de dentes.

Ao contrário do resto,
sua escova é um totem,
             um bastião do seu nome.
Ela não é só um instantâneo de um passado,
ela é o grito por sua presença...

Sua escova tem vontades próprias
e essas vontates não me permitem perdê-la.
Ela continua lá:
  no mesmo pote,
  com a mesma caixinha,
  a espreita,
  espiando o movimento do abrir e fechar
da porta do meu banheiro.

Sua escova guarda nossas memórias...
Sua escova tem o sonho da volta...
E no sonho dela, você a segura,
coloca a pasta,
esfrega com força e rapidez contra os dentes
logo após um café corrido
colocado entre o "bom dia"
e o atraso pro seu trabalho.

Partida

Ficam as fotos estáticas,
      os discos arranhados,
      os copos vazios,
      a cama arrumada,
      os livros sem dedicatórias,
      o anel sem o anelar.

Fica o eu,
Parte o você.
Enquanto isso, os nós se perdem
     em poemas
     num caderno partido.

Menos Zero Ponto Seis

O frio me conduz.

Força o sangue quente a circular
bombeando a vontade,
          o desejo,
          o tesão,
como quem luta para sobreviver,
  e não congelar,
durante os três segundos dos nossos olhares
  cruzados.

Tanque da Cozinha

os olhos são os primeiros a entregar
  semicerrados
  inchados
  vermelhos
  perdidos.
tentando buscar uma luz de lembrança,
querendo encontrar um detalhe
  para diminuir sua culpa.

os músculos cansados
guiam o corpo para o tanque
onde esperam trabalhar incansavelmente,
somente para apagar provas que desconhecem...

um pouco de sabão,
um tanto de água
e muito enxaguar...

aos poucos, surgem as primeiras bolhas.
carregam o cheiro, o tato, o beijo, a trama, a transa.
e assim, a noite ébria se faz presente
  como quem quer ser esquecida.
  
mais fortes que na camisa,
estão as marcas na memória:
você, solto, leve e em casa;
ela, solta, leve e longe de casa.
fusão de semelhanças e diferenças em gozo.

esfrega pano contra pano com mais força.
no desespero, sangram-lhe as mãos
  dar cor vermelha do batom
  que assina seu pescoço.
sangue que mancha o roxo do tecido,
  das pequenas hemorragias propositais
  tatuagens removíveis.

no cabelo desgrenhado ainda está o cheiro,
  cigarro do depois.
na respiração, o suspiro de uma noite
  muito mal dormida

no coração, um misto de culpa
  com utopia...
no coração, uma linda utopia...
no coração, um coração limpo.

Três Tempos

No café, um pensar,
o leite frio,
o queijo quente,
a cachorra ao colo,
o mar.
Você.

No almoço, um apesar,
os azulejos do chão,
a coberta largada,
os travesseiros perdidos,
o nu.
Nós.

No jantar, um pesar,
o motor ligado,
a estrada reta,
a canção no rádio,
a ida.
Eu.