incursão por um cigarro


invadiram meu quarto. invadiram minha solidão. aquele casal na janela do segundo andar, ao surgir ali, meio de supetão, enquanto eu olhava só para o vazio emoldurado pela cortina. o silêncio dos meus pensamentos parou sua amplificação ao ver surgir da penumbra do fundo do quarto aquele casal de dorsos nus. chegaram em alta madrugada, sem pudor, claramente afetados de um carinho mútuo e mudo. não diziam palavras e, da maneira mais clássica possível, eram apenas com os olhares que travavam um diálogo próprio, incompreensível para qualquer ser além dos dois. tentei entendê-lo, mas minhas lentes de contato não eram capazes de decifrar aqueles códigos. um olhar para baixo, outro para o lado, buscando algo que eu não via, os dois olhares se conectarem, dois sorrisos. uma frase completa que eu não entendia. eles não me percebiam. eles não percebiam nada ao redor, com exceção da fumaça do cigarro que pairava por entre os olhares. cigarro que os dois teimavam em dividir com uma velocidade considerável. talvez movida pela ânsia de voltar ao breu de onde saíram. nunca achei que fosse sentir inveja de um ser inanimado como um cigarro, mas assim foi. ganhei afeição por ele ao vê-lo sambar pelos dedos, repousar por entre os lábios, gerar fumaça só para ser notado. queria aquilo tudo. queria ser aquilo tudo. transfigurar-me em fumaça e fazer casa ao me espalhar por seus corpos. mas não. sou só um homem concreto, por vezes metafísico de pensamentos silenciosos e sem a fumaça de um cigarro. voltaram-se a escuridão acolhedora e desistiram do cigarro. deixaram-no pela metade no peitoril da janela. aceso. um farol para meus desejos. até que eles me silenciem de novo.

supernovas e buracos negros

criar não é uma arte,
é uma consequência.

queria poder ser criativo
como as tantas estrelas que admiro durante a noite
mas dedico minha vida a lutar contra a gravidade
a carência
da minha situação
que me diz que
em vez de pó de estrelas
sou uma singularidade
sem som, nem luz
que me dê cor ou sentido, não
sou um ponto nesse inefável céu

perdido entre vênus e marte

abraçado ao vazio e a sua imensidão
tenho dificuldades de sentir meus pés na terra

ela é árida demais
de sentimento
ela é úmida demais
de tesão e castidade

no mundo em que estou, nesse, dos outros,
nada me apetece
nem vênus
nem marte

mesmo assim eu
sinto fome
de carne fresca
de suores noturnos

meu corpo não consegue conceber
a eternidade do espaço
e não se conforma com sua prisão
entre duas tão diferentes órbitas

vou me perder entre as estrelas

buscar constantemente
a felicidade me cansa

despido
deixo minha armadura e
me banho em seu rio de águas mornas

sem vontade e coragem de sair
o dia me despe
de suas luzes

sob as estrelas
ribeirinhas
as sombras me curam da compulsão
da busca por seu calor solar

nunca precisei buscar
o frio
agasalhado
corre em minhas veias
alheio às marés e suas luas

constante como uma chama
eterno quanto a galáxia

meu silêncio

fico parado. calado. quieto. observando ao redor o som que aumenta, os tons espumantes que crescem com o colarinho bravejante das cervejas que descem. ouço argumentos que poderia dizer, ideias que poderia criar, vontades que poderia ter. mas calo e olho nos olhos esperando uma brecha cinematográfica para dizer qualquer besteira, mas calo. espero passar a ânsia de me colocar, de soar esperto, e a vejo ser levada para outros mares, outros ares. suspiro me lembrando daquele samba. calo e ouço as vozes que poderia ter. simulo a risada ao entender a meia piada. simulo o tom sério a entender o meio argumento. simulo a presença enquanto sou só meio mundo. meio aqui, meio aí. carrego o respeito aos mudos por saber o esforço de falar e tento não decepcionar. olho para o copo, reflito sobre algo relevante e chego a conclusão de que nada sei além de alguns discos e umas poucas histórias sem graça que vivi. sou trivial como esta conversa. como esta noite. não quebrei braços, não fugi de casa, não tive mil amantes. só tenho que pegar um ônibus. digo qualquer besteira que passa. todos riem e me sinto bem. me sinto mais completo. definitivamente mais completo que o copo, mas calo novamente. goles me dão frases, me dão ideias, me dão mais vontades de estar em outras mesas com outros copos. penso em como estou feliz esperando o dia de esperar o ônibus. me calo com um sorriso besta no rosto, um sorriso mais úmido que o copo seco. a mesa silencia e perguntam qual o meu nome. calo a minha felicidade de não querer estar ali. de poder estar aí. respondo e novamente o barulho prossegue.