O céu de Belém se cobre de nuvens que desabam metodicamente todos os dias. Pós almoço e antes do sol se ir. “É sagrado”, repetem as senhorinhas que me enchem de bolo de tapioca e suco de cupuaçu. Arma-se sem ruídos, discreta. Aos desavisados, vem de surpresa. Aos locais, de alívio. “Nada mudou por aqui, mas também, o que muda?”. Alguns reclamos, tal como são condizentes da rotina, mas aí dela se não viesse. Aí de tudo que não queremos não acontecesse. Sobre o que escrevia, sobre o que eu derramaria minha chuva?
(...)
Minhas nuvens percorrem distâncias e tentam voltar para este lugar que aprendi a chamar de casa. Por ai, onde um ama e outro odeia. Nesta cidade que leva ‘garoa’ em seu apelido e está seca, de todas as maneiras. Penso no que me espera. Penso no que poderia acontecer se não voltasse. É do meu sangue cigano. A insistência da partida, o ódio pelas despedidas. "E se, e se...?" O telefone brilha constantemente cheio de palavras que não quero ler. De um e de outro. Olho a janela desse quarto de hotel que compartilho com fantasmas. Sinto como se minha pele jamais fosse secar aqui. Torço pra que não aconteça. Por via das dúvidas, lá estou eu, pós almoço e antes do sol se ir, roubando a água de Belém e carregando dentro de mim. Na esperança de descarregá-la aonde mais se precisa. Em um, para que tudo mude. E em outro, pra que nada mude.
hesitei
em escrever aquele verso
já soterrado por outras lembranças
perdeu-se para sempre
mais um poema das saudades
hesitei
em utilizar aquele verbo
já desgastado por outras lembranças
ganhou-se para sempre
mais uma dama para as saudades
não há esperança para os covardes
nas poesias
ou nas utopias
preciso
de alguém pra poder apontar e chamar de amor.
tenho tanto, tanto amor em mim
e a pressão do meu peito pede por um foco preciso
de alguém pra poder apontar e chamar de amor.
Lembranças o aquecem por dentro.
Mas, ao mesmo tempo, lembranças são capazes de estraçalhá-lo internamente.
--- Haruki Murakami
um endereço que se torna só um endereço
destinatário de compras online
e contas que não me importam mais
aquelas ruas tornam-se obras de arte
num museu particular
habitado por fantasmas
guardados em três por quatros
dentro da minha carteira
como olhar a fumaça do cigarro
desfaz
as casas os becos as ruas
abrem novos espaços
desfaz
constrói-se uma história própria
num ônibus de madrugada
uma direção
uma epifania
chamada casa
sonhei um sonho incrivelmente detalhado
em que a gente se amava, se sorria,
se casava
o fruto do que eu não mais plantei
no fim, abraçados, contive as palavras
que gastava, para cuidar dos votos
de um ritual mundano que nunca sonhamos ter
não saber o que eu diria
é o motivo da tormenta
e sem saber o que pensar do sentimento
que só tive por ser sonho, por ser triste,
fico com medo de dormir
eu nem pensava mais em você,
mas fico feliz, pois nesse mundo etéreo
existe meu voto que nunca existiu.