hesitei
em escrever aquele verso
já soterrado por outras lembranças
perdeu-se para sempre
mais um poema das saudades
hesitei
em utilizar aquele verbo
já desgastado por outras lembranças
ganhou-se para sempre
mais uma dama para as saudades
não há esperança para os covardes
nas poesias
ou nas utopias
preciso
de alguém pra poder apontar e chamar de amor.
tenho tanto, tanto amor em mim
e a pressão do meu peito pede por um foco preciso
de alguém pra poder apontar e chamar de amor.
Lembranças o aquecem por dentro.
Mas, ao mesmo tempo, lembranças são capazes de estraçalhá-lo internamente.
--- Haruki Murakami
um endereço que se torna só um endereço
destinatário de compras online
e contas que não me importam mais
aquelas ruas tornam-se obras de arte
num museu particular
habitado por fantasmas
guardados em três por quatros
dentro da minha carteira
como olhar a fumaça do cigarro
desfaz
as casas os becos as ruas
abrem novos espaços
desfaz
constrói-se uma história própria
num ônibus de madrugada
uma direção
uma epifania
chamada casa
sonhei um sonho incrivelmente detalhado
em que a gente se amava, se sorria,
se casava
o fruto do que eu não mais plantei
no fim, abraçados, contive as palavras
que gastava, para cuidar dos votos
de um ritual mundano que nunca sonhamos ter
não saber o que eu diria
é o motivo da tormenta
e sem saber o que pensar do sentimento
que só tive por ser sonho, por ser triste,
fico com medo de dormir
eu nem pensava mais em você,
mas fico feliz, pois nesse mundo etéreo
existe meu voto que nunca existiu.
no café da manhã eu penso na caneca do flamengo esquecida no escorredor faz algum tempo. no almoço, penso nos pratos que não comemos porque não tivemos tempos de aprender a cozinhá-los. no jantar, penso em como é estranho comer sem assistir a alguma reprise de seriado dos anos noventa. penso com a fome daquilo que já não existe mais. nesse apetite pelo vazio, vejo as mil dimensões românticas que pude criar em cada uma das refeições. enxergo cada uma e mergulho assim como mergulhava quando criança nos meus eus multiplicados pelos espelhos das barbearias de minha cidade. encontro em cada uma delas apenas um vestígio decrescente do que sou - ou melhor - do que poderia ser, até por fim me tornar nada mais que um ponto distante e irreconhecível.
na primeira imagem, fica clara a proximidade com a realidade; meu cabelo está ali, minhas rugas, sua sombra. na primeira, ainda consigo sentir vergonha do meu olho esquerdo meio fechado e ainda acho graça do jeito que você pronuncia meu nome. na segunda, em que encaro minha nuca, já não tenho mais as dúvidas de ontem e os contornos da minha boca não desenham senão um sorriso vacilante de quem não tem com o que se preocupar enquanto você assiste tv deitada em meu colo. da terceira para a frente, somos formados por contornos que nos desenham de maneiras idealizadas, voluptuosas, irresponsáveis. só nos interessa nós mesmos em pontos e caminhos infinitos que não nos levam a lugar nenhum.
penso e uma voz me salva do transe. uma pedra invadindo os espelhos e deixando somente os cacos refletindo os fragmentos daquilo que me sobrou. um restaurante, uma mesa para um e um cardápio na mão. é o garçom quem me pergunta qual prato eu desejo e não sei o que pedir. hesito e não invento mais.
peço um arroz com filé e fritas para viagem.