Eu Quero

eles querem que seus quadros quebrem, para que você compre quadros novos
eles querem que seus amores acabem, para que você possa comprar novos amores
eles querem que seus pais morram, para que você possa comprar novos serviços na funerária

eles querem algo de você
e você
o que quer de você?

Chorar de novo

Eu quero chorar e me sentir vivo novamente

sem dúvidas,

eu quero me sentir eu mesmo,
como nunca antes me senti na vida

Depois de perder o desejo por tudo,
a criança morre aos 20 poucos anos
e está pavimentado o caminho para tédios e seriados

Cadê você, luz da minha vida?
Cadê você, mentira que me faz feliz?

Na frequência do autismo momentâneo,
entre cafés e exames de sangue,
a paz se mostra como escravidão
sem montanha russa ou algodão

Eu sabia chorar...
agora já não lembro quando esqueci

Um dia tive fé e hoje há dúvida em meu coração

Entre o "aceitar resignado como deve ser"
e brincar com os brinquedos
eu prefiro joga-los em outras crianças
e ver o que acontece

na livraria

    era um menino vestido como eu me vestia aos quatorze. com a mesma paixão nos olhos, com a mesma confusão nos movimentos. e, como eu em minha virtude, visivelmente perdido entre o caos e os sentimentos.
    projetei seu futuro como quem joga os búzios: aos dezesseis, amaria uma serpente; aos dezessete, aplicaria bêbado o que achava que aprendia nos filmes pornôs. aos vinte e um, realizaria que sua teimosia não é nada diferente da de seus pais. aos trinta e dois, pela primeira vez, entraria em pânico com o pensamento de que sua morte não é a mesma que leu na poesia.
    veria que sonetos são antiquados, mas que há espaço na vida pro subjetivo, pro analógico. veria que sua vida é tão feliz e tão sofrida quanto a do outro, mas se sentiria ainda mais sozinho com isso.
    seria gentil nos dias bons, seria áspero nos dias bons. teria dias bons.
    devolvi o shakespeare pra prateleira de uma forma arbitratriamente barulhenta, mas não consegui alcançar seus olhos.

giroflex


de onde eu vim, sirenes sempre precederam desgraças. eram cortes abruptos na rotina bucólica dos pássaros cantando.

enquanto tomo um café em meio aos zumbidos dos automóveis em uma lanchonete qualquer, novamente escuto as sirenes. carros sobem em desespero a avenida engarrafada por mais uma vez. em mim, cresce uma aflição não familiar a medida que o som aumenta somente por querer saber o que motivou aquele alarde sobre rodas. enquanto isso, o rapaz do outro lado do balcão continua comendo o seu pf ouvindo o garçom o entreter com gozações de futebol. os dois sorriem. minha mão começa a suar; minha cabeça se perde imaginando consequências nefastas para aquele chamado. um motoboy tomba em mais uma marginal ficando gravemente ferido. uma senhora sofre um infarto após uma tentativa de assalto bem-sucedida nos jardins. mais uma favela, curiosamente perto do brooklyn, pega fogo. explodiram um caixa eletrônico num banco da zona norte. tudo isso me vem a mente, enquanto o rapaz ao lado degusta um belo gole de coca-cola. respiro pausadamente e tomo um sofrido gole do café já frio. percebo, então, a natureza da indiferença que o fez sequer notar a passagem de todo o barulho há pouco. ele se sente em paz. de certa forma, o invejo e compreendo um pouco melhor esta cidade e suas sirenes. aqui, elas não precedem desgraças. as daqui nos condicionam auditivamente a reproduzir a sensação da segurança contida no concreto. a segurança branca, classe-média ordeira e masculina do concreto. aqui as sirenes são lembretes que nos mostram que a cidade-fábrica continua a operar corretamente para quem aceita com ignorância a sua própria condição. a ignorância de achar que um rosto desconhecido, automaticamente, deixa de representar um rosto; de que um bairro que nunca visitado não representa o conceito lar; de se pensar indivualmente um indíviduio.

as sirenes daqui são como os mosquitos que não nos deixam dormir: lutamos contra ou então cubrimos a cabeça com a ilusão do lençol.

Koan do masoquismo

Se você aceita tudo como alegria você é um masoquista
Se você aceita tudo como sofrimento você é um masoquista
Talvez o problema sejam as lentes