vou ver

andar de madrugada pelas ruas da cidade é
tranquilo o vento que passa pela minha camisa de malha fina
arrepia
o ar limpo dessas horas me faz sentir parte de mim novamente

é de forma convicta que firmo cada passo chegando
perto de mim um canto de passarinho me alerta da
juventude que se passou
em marcha automática retorno à consciência
confusa

eu cheio de arrependimentos
e agora paro para dar valor
às consequências.

taxa de embarque

o raio-x não detecta
na bagagem de mão
  toda essa melancolia
tão perigosa quanto qualquer explosivo

o detector de metais não capta
no fundo bolso direito
  esse abandono afiado
e todas suas funções de canivete suíço

se encontrassem tudo
eu simplesmente os colocaria
  de muito bom grado
  dentro daquele lixo
junto com tantos outros objetos
  pontiagudos ou
inflamáveis

Boa Sorte

Eu sou as curvas do antigo trem pelos morros,
       os nelores ruminando em movimento perpétuo no pasto,
       a árvore sozinha, só atormentada pelo vento seco e quente.

Eu sou a poeira do passar do caminhão de leite,
       o alvoroço das maritacas no fio de alta tensão,
       os formigueiros pisados por brincadeiras de criança.

Eu sou a estradinha que não leva a lugar nenhum e nem tem pressa de levar,
       o pé de milho fazendo valer a vida na terra recém arada,
       o coreto e a tv comunitária esperando dar a hora da novela.
       
Eu sou o prazer de enfiar a mão até o cotovelo num saco de grãos de feijão,
       o par de havaianas soltas e tortas marcando o gol na praça,
       Dona Adélia gritando, chamando os netos para o almoço pronto.
       
Eu sou a sobra de tempo que mora na mesinha de xadrez,
       as lendas e apelidos ofensivos dos mendigos e pedintes,
       o tilintar abafado das bolas de gude com a areia do parquinho.
       
Eu sou saudades,
       inocência
       e roça.

canto do leste

vou dormir
na hora em que os postes quentes
pensam
que já está na hora de dormir.

mesmo que os galos digam bom dia
que os canários digam bom dia
e até os corvos
mensageiros do sono eterno
digam bom dia
vou dormir.

mas a hora de dormir
a hora em que o interior mais ferve e queima
é a hora em que penso no seu pássaro bom-dia
a hora
em que tudo é luz

menos nos postes
e no lado de dentro das pálpebras.

pousos e decolagens

o ruído do relógio
  escondido nos rasantes de
  avião
    repete
      o quanto o tempo
    voou embora
        com você