rancor

o passado
não passa
gruda, cola
feito graxa

apartado

não caibo em nada
e quase nada
cabe em mim

acabo ilhado num fim
sem letra, sigla ou língua
que dê cabo ao que passo
sozinho

acato este espaço novo
e perdido me acanho perante
o estorvo
entre o encanto e o estranho
me esqueço da palavra
socorro

em reentrada

em minhas tentativas de auto-terapia,
    (falar comigo mesmo substitui um profissional, certo?)
cheguei à seguinte conclusão:

eu tenho uma relação tóxica com a inspiração.

parece que pra escrever,
           pra sentir,
eu preciso me queimar
como quem vem do espaço
em fragmentos

que pra me sentir bem, tenho que me sentir mal
um mal poético, idealizado, disassociativo

acho que fiquei sentindo o vazio por tempo demais

cosmovisão

em minha fortaleza
cuido de meus engenhos
silenciosamente
e sigo todas as instruções da máquina de lavar

a quantidade de sabão
controlada pelo copinho dosador
limitada pelo volume de roupa
  nível 3;
hesito sobre o amaciante
troco por um tanto de vinagre
e posiciono o último botão
  colorida suja;
  
fecho o tampo,
vejo a água sair
e uma surpresa

o reflexo plástico me informa:
hoje o céu está azul

hoje eu pude ver o céu

embarcação fantasma

sigo rumos
em descoordenados
movimentos náuticos

desamparado de bússolas
ou estrelas guias
sorteio rotas nubladas

vasto precipício de certezas,
a branquidão do céu
me engole saboreando a irrelevância

por milhas e milhas,
alimento o nada
dos mares assombrados por nós