shiver

amiga
  o tempo passou e ainda brota em cada canto
  seu nome
    em tinta colorida

não falei contigo por medo
confundo facilmente amizade com convívio
e nada mais devo ter em comum com você

te escrevo pra dizer
  que conquistei a vida
  e que nada me importa mais

  que os problemas
  soam como sirenes
       como sereias
    aos meus ouvidos
      que não sabem mais reconhecer a sua voz

  que não sei seu endereço
  e o quanto queria poder visitar algum lugar contigo
    seja quem for
    só pra um chá
    por um inverno

  que meu propósito não existe
  e que só vivo pra te escrever
  em mais uma carta

melancolia

ando sentimental
em tudo o que há
    ausência

o tombo da criança
a voz de Cazuza sozinha
um peito vazado na noite
porta-retratos vazios

de tudo que é vivo
ninguém há de me entender
ou brincar de psicólogo

exceto as gaivotas
  flertando com o mar
    os ventos fortes do mar
  mas eternas
amantes ternas da terra firme

cosmético

as pessoas me vêem e me dizem
que nem parece que eu terminei
uma relação tão profunda e tão longa
que eu pareço radiante, leve
e até mais bonito

eu não sei se acredito nisso
que era o que eu precisava pra ser feliz
ou se é porque
todos os dias
uso o sabonete de rosto que ela deixou
pra ver se acaba logo

Vaca Profana

'Que vaca egoísta'. É isso, é o que todas somos. Oferecer os braços abertos, sexo quente e um peito saltitante. Se não fosse tão ordinariamente comum, diríamos o quão pequena a vaca egoísta é. Mas ao inferno, nós dizemos da mesma forma. Também porque somos cegas. O umbigo está muito abaixo para se olhar, e cá entre nós, se você também faz parte, sabe que a bunda magra alheia é muito mais interessante de se morder.
Mas uma, uma em cada cem vezes nós choramos. Todas juntas, sem bebida, sem cigarro, sem foda de apoio. Choramos a mediocridade, sonhos não realizados, os quilos não perdidos, os amores desgraçados, a alma empobrecida e a pouca água que nunca é suficiente pra fazer correr tudo que foi visto.
Nos escondemos em nossos buracos, buscamos força no que não existe: a mulher intangível. A gente até jura que não sentiu nada, que 'aquele não era pra ser'. Mas o 'não ser' pesa e o espírito feminino é naturalmente um fardo, que no fim da vida (vivida) já não caminhamos majestosas como viemos, e sim nos rastejamos caminho de volta ao útero, transformando no trajeto cada célula em tristeza, fecundando a terra, nutrindo o ciclo vicioso, mantendo a amargura eterna.

ao atravessar da fronteira

o amor existe
e não há o que me convença do contrário

mas ele não é uma pessoa, nem um potencial,
não é tópico, trópico, nem tem um pingo de sexual.

ele existe

e se revela
como uma antiepifania que
  em vez de se realizar pela repentina resposta genial
se materializa do ar ao você se propor
  um momento de confusão

entre
  onde termina você
e
  começa todo o resto

    (por favor,
entre)