migrante

num bosque
de egos silenciosos
por entre os arbustos
me escapo

no anseio por sons
e agraciado de asas,
caço os pássaros
da serenidade
que batem em revoada

migram para um sul impossível
para um fim
somente plausível
em bando
e sem mim

nós mais perto do centro do aquecimento global

por não sabermos,
me cale
juntinho
uma palavra válida
entre as falas do lugar
e os privilégios de estar
à deriva

ou ainda o não dito
das sortes de beleza
de olhar canais
ou devorar manguezais
à espera do dia acabar
e do nível do mar
voltar

um dia veremos,
além dos coqueiros,
tudo o que não sabemos nomear
avoar pras águas
e se sonhar peixe

paredes, chãos e caminhos.

e junto, meus segredos
em seu sotaque
de outra terra
num último ataque
que tua boca não erra

ampulheta

minha velhice
de faca em punhos
conta seus baques
em lutas contra pães de queijo pif paf
e superfícies ditas antiaderentes

mudam-se os anos e as receitas
         as sacolas e as travessas
         o antes e o depois

mas há sempre o mesmo embate
entre o ego da lâmina
e a preguiça derretida
horas em mim grudada
antes, congelada
e agora servida

uma vez houve uma cidade

na rua das casas mortas
a ilusão transborda
num jogo de sombras inexistentes

sobre o terreno
vejo um terraço
sobre o terraço
corpos vadios enganando constelações
na busca por um norte oscilante
que o amanhã encerrava

mas se o futuro deságua
o passado desaba
e suja de barro
os lençóis dos meus fantasmas
expondo
as cicatrizes em quadras
memórias presentes
de um provo crente
em rotinas silenciadas

inércia

se eu pudesse
manteria o ar quente
estacionado para sempre
nos pulmões

inerte
enquanto vejo desfilar
glóbulos vermelhos
em rostos desconhecidos

seguro
não tomaria partidos
não sairia às ruas
torceria silenciosamente
por um bom número de plaquetas

enquanto o mundo deretesse
ou um pássaro cantasse
dolorosamente
um sopro